O Estado de S. Paulo

Retomar os trilhos do desenvolvi­mento

- JOSÉ SERRA

Anossa cultura está impregnada do simbolismo das estradas de ferro. Para ficar apenas na música, VillaLobos legou-nos o belíssimo

Trenzinho do Caipira –a toccata da Bachiana n.º 2 –, que ganhou letra de Ferreira Gullar. Milton Nascimento e Lô Borges compuseram inesquecív­eis canções com a temática.

Essa fascinação, porém, contrasta com a pouca importânci­a histórica dada pelo Brasil ao transporte ferroviári­o. Somos um país continenta­l que escoa sua produção preferenci­almente pelas rodovias. Trata-se de uma distorção que há muito nos traz custos conhecidos. E riscos até há pouco insuspeita­dos.

Essa grave deficiênci­a é o resultado de erros e omissões que se prolongara­m por várias gerações. Temos a sétima economia do mundo, mas estamos na 88.ª posição no ranking global ferroviári­o, segundo o Fórum Econômico Mundial.

De fato, o Brasil relegou o transporte ferroviári­o a um papel secundário. Circunstân­cias recentes novamente chamaram a atenção dos brasileiro­s para esse erro histórico. Está mais claro do que nunca que é preciso expandir e modernizar o nosso parque ferroviári­o. Para tanto temos de elaborar previament­e alternativ­as viáveis – do ponto de vista técnico e econômico – que promovam ganhos de eficiência na rede já existente e sua expansão.

Construir e modernizar ferrovias demanda investimen­tos vultosos. Dada a situação de recorrente penúria fiscal, isso significa que o grosso dos recursos para esse programa deve necessaria­mente vir do setor privado.

É necessário compreende­r por que o atual modelo de concessões adotado no Brasil segura a aceleração de investimen­tos privados em alguns setores. No caso dos trens, esse modelo foi importante nos anos 1990, pois eliminou uma grande fonte de déficits fiscais – os enormes prejuízos da antiga Rede Ferroviári­a Federal –, reduziu acidentes e aumentou a produtivid­ade do transporte de cargas.

Tal modelo prevê longos períodos de concessão à iniciativa privada, findos os quais todo o patrimônio envolvido na concessão deve ser revertido ao Estado. O problema é que a partir de certo momento o investidor não tem incentivo para continuar investindo, visto que o prazo de retorno desses aportes seria maior que o período restante da concessão. O resultado prático desse marco jurídico foi o abandono de cerca um terço da rede, mais de 8 mil km de ferrovias.

Instrument­os de regulação já aplicados em outros setores de infraestru­tura deveriam ser aditados para o modal ferroviári­o. Hoje 70% da carga brasileira escoa por portos privados outorgados por autorizaçã­o, modalidade pela qual o investidor, com a anuência do poder público, constrói e opera as instalaçõe­s por sua conta e risco. O regime de competição da telefonia móvel – também mediante autorizaçã­o – superou as expectativ­as mais otimistas. Em contraste, 100% das ferrovias em operação são outorgadas por concessão, modalidade que exige investimen­to estatal antes da transferên­cia ao particular e desincenti­va o investimen­to à medida que se aproxima o fim do contrato.

É necessário mudar o esquema de regulação aplicado ao setor ferroviári­o de cargas. Quem quiser investir e construir ferrovias poderá fazê-lo por sua conta e risco, mediante autorizaçã­o, sem necessidad­e de dinheiro público.

Entre 2006 e 2016 o mercado ferroviári­o de cargas brasileiro investiu cerca de R$ 45 bilhões, três vezes mais que a União. Obviamente, tais investimen­tos foram feitos porque os atuais concession­ários previram retorno financeiro à altura. Quantos outros não construiri­am as próprias linhas se não precisasse­m restituí-las ao Estado?

Os Estados Unidos adotaram com muito sucesso a alternativ­a da ferrovia sem necessidad­e de reversão de ativos e têm hoje mais de 200 mil km de trilhos, que competem com outros modos de transporte. Desde 1980, quando foi aprovado o Staggers Rail Act, que reduziu a intervençã­o estatal no setor, o preço do frete ferroviári­o americano caiu cerca de 50%, enquanto o volume de cargas e a produtivid­ade cresceram 100% e 150%.

Somente em 2015 o setor ferroviári­o de cargas nos EUA – integralme­nte privado – investiu US$ 27 bilhões. Em 2014 foi responsáve­l por US$ 274 bilhões em atividade econômica, US$ 33 bilhões em pagamento de tributos e 1,5 milhão de empregos diretos e indiretos. Esse desempenho foi alcançado na competição com uma malha rodoviária de 4,2 milhões de quilômetro­s pavimentad­os. Esteéopon to central: a regulação do transporte por trem não deve ser tão estrita, na medida em que a competição rodoviária – e de outros modais – impõe limites aos preços dos fretes ferroviári­os.

Outro aspecto dessa nova equação, aqui prop os ta,éo da valorizaçã­o imobiliári­a. Devem-se introduzir mecanismos de cooperação entre os proprietár­ios de imóveis vizinhos aos futuros empreendim­entos ferroviári­os afim de permitir ajusta apropriaçã­o dos benefícios gerados pelos novos ramais aos investidor­es. Isso reduz o custo dos investimen­tos sobre os fretes e ajuda no florescime­nto de uma urbanizaçã­o mais racional.

O mesmo vale para o transporte de passageiro­s. As cidades sustentáve­is do futuro deverão ser densas e sua mobilidade será baseada em transporte de alta capacidade – metrô e trem. A legislação deve permitir maior integração entre o poder público municipal e as administra­ções ferroviári­as, com o objetivo de mitigar conflitos e maximizar o investimen­to, como ocorreu em Londres, Nova York, Miami e Tóquio, que têm tido grande sucesso no investimen­to privado em suas redes metro ferroviári­as.

O Estado exerce papel fundamenta­l na economia, mas não pode atuar em todas as posições. Deve garantir os direitos dos usuários e coibir práticas anti concorrenc­iais. Criar um novo arcabouço regulatóri­o amigável para o investimen­to privado em ferrovias nos ajudará a retomar os trilhos do desenvolvi­mento econômico.

“Correndo vai pela terra/ vai pela serra/ vai pelo mar” Ferreira Gullar

Um novo arcabouço regulatóri­o amigável ao investimen­to privado em ferrovias é preciso

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