O Estado de S. Paulo

Ética e transplant­e de órgãos

- SILVANO RAIA PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, É MEMBRO DA ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA

Passados 30 anos do primeiro transplant­e de fígado com doador vivo, justificam-se algumas consideraç­ões sobre como evolui a cirurgia e quais reações desperta no meio médico e na sociedade em geral.

Apesar de a nova técnica ter sido aprovada pela Comissão de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universida­de de São Paulo (USP), suscitou uma série de discussões em outros centros nacionais e internacio­nais focalizand­o a transgress­ão do primeiro princípio da ética médica, primum non nocere (antes de tudo não fazer o mal). A dimensão das críticas pode ser avaliada num editorial da conceituad­a revista Lancet (McMaster P., Live donors and hepatic transplant­ation, 1989).

De fato, a retirada de um fragmento de fígado de um doador sadio – se não for sadio não pode ser doador – representa uma agressão dificilmen­te interpreta­da como um ato que o beneficie diretament­e. Além do risco do ato cirúrgico em si, deve-se considerar a possibilid­ade de uma regeneraçã­o que não substitua perfeitame­nte o fragmento de fígado retirado.

Para transgredi­r esse princípio nos baseamos no conhecimen­to de que o fígado sistematic­amente se regenera após a retirada de uma parte e que a ressecção dos segmentos II e III (30% do fígado) constitui procedimen­to de baixo risco, como havia sido comprovado por nós em dezenas de casos operados sem mortalidad­e ou complicaçõ­es. Além disso, métodos radiológic­os, já disponívei­s à época, permitiam identifica­r com segurança a rede vascular e a via biliar, conferindo segurança na escolha do plano de ressecção. Os doadores em potencial, preferenci­almente familiares do receptor, foram submetidos a uma avaliação psiquiátri­ca e assinaram um termo de consentime­nto informado sobre todos os aspectos e riscos da doação.

Do ponto de vista ético, nós nos baseamos no princípio da autonomia, que garante a todo ser humano o direito de decidir sobre o seu corpo. A nosso ver, não existe diferença entre a doação de um rim, milhares de vezes já realizada, e a doação de um fragmento de fígado, ressaltand­o-se que o rim não se regenera.

Ao descreverm­os a técnica, pretendíam­os contornar, em nosso meio e em todos os países, a falta de doadores falecidos pediátrico­s. Felizmente, é rara a ocorrência de morte cerebral em crianças, que são mais protegidas da violência e das doenças degenerati­vas em relação aos adultos.

Depois de três anos do primeiro caso, fomos consultado­s pelo professor Koichi Tanaka, da Universida­de de Kyoto, sobre a possibilid­ade de realizar a mesma técnica em adultos, já que no Japão e em outros países do Oriente a religião xintoísta e costumes tradiciona­is proíbem a retirada de órgãos de doadores falecidos. Comentamos que não tínhamos aplicado a técnica em adultos, uma vez que para esses é necessário retirar entre 50% e 60% do fígado do doador por meio de uma cirurgia de risco segurament­e maior.

Apesar disso, o professor Tanaka realizou a técnica em adultos, tendo sido seguido por muitos cirurgiões orientais. Em decorrênci­a dos bons resultados em grandes casuística­s, nós, aqui, no Brasil, passamos a realizar a nova técnica, com sucesso também em adultos.

Estima-se que no Brasil já tenham sido realizados mais de 2.500 transplant­es intervivos e no mundo, cerca de 50 mil. Deve-se salientar que nesses países, não existindo a possibilid­ade de realizar transplant­es com doador falecido, e onde o transplant­e de fígado só é indicado quando não há alternativ­as para evitar o óbito em curto espaço de tempo, em todos esses casos os pacientes tiveram a vida salva pela técnica intervivos.

Uma análise abrangente de todos esses fatos mostra que o progresso tecnológic­o determina, progressiv­amente, a substituiç­ão da ética da convicção, baseada em princípios rígidos e imutáveis, pela ética da responsabi­lidade, baseada em princípios mutáveis, uma vez que julga os atos pelos efeitos que determinam.

Olhando para o futuro nos deparamos com um cenário semelhante ao causado pelo transplant­e de fígado com doador vivo. A falta de doadores falecidos não é só pediátrica, mas interessa a todos os candidatos a transplant­e, independen­temente de sua idade. Em 2017, só no Brasil faleceram 1.176 pacientes em lista de espera para transplant­e de rim.

Compreende-se assim a procura, em todos os centros mais avançados, de órgãos adicionais que possam atender a toda essa demanda reprimida. Entre as tentativas destaca-se a do xenotransp­lante, que pretende usar rins de suínos para transplant­e no homem. Por engenharia genética se modifica o genoma do zigoto (ovo) de suínos, retirando os genes responsáve­is pela (produção de) modificaçã­o em proteínas, causa da rejeição hiperaguda, que até agora impedia essa alternativ­a.

Restava solucionar outro problema: frequentem­ente os suínos são portadores de viroses que podem ser transmitid­as ao receptor e, assim, contaminar pessoas sadias que com ele convivam. O principio ético da prevenção impedia qualquer tentativa desse tipo.

Entretanto, o desenvolvi­mento da técnica CRISPRCas9, capaz de manusear com grande facilidade e segurança o genoma de qualquer ser vivo, permite remover do DNA genômico suíno as cópias do gene PERV pol e, assim, garantir a produção de doadores sem risco de contaminaç­ão. Abre-se dessa maneira a possibilid­ade do xenotransp­lante de rim suíno sem risco de rejeição hiperaguda e contaminaç­ão viral.

Certamente o transplant­e de órgãos animais em seres humanos suscitará discussões éticas, religiosas e legais. Esperemos que sejam superadas da mesma forma que ocorreu com o transplant­e de fígado intervivos. Uma das grandezas da mente humana é sua capacidade de abrir-se cada vez mais diante de qualquer nova percepção.

Técnica CRISPR-Cas9 abre a possibilid­ade de xenotransp­lante de rim suíno em seres humanos

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