O Estado de S. Paulo

O rei vem quando quer

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Oencontro entre Trump e Kim Jong-un foi um acontecime­nto impensável que se tornou realidade. Uma ópera bufa escrita e interpreta­da pelos dois chefes de Estados mais insanos do planeta, os mais misterioso­s e perigosos e os menos estáveis, que se tornaram os inventores das geografias de amanhã.

Poderíamos enumerar por longo tempo os efeitos devastador­es ou benéficos desse “tiro certeiro” realizado em comum por Trump e Kim. Poderíamos também analisar os sinais discretos que o comportame­nto dos dois homens enviaram à população de todo o mundo.

Nada nessa “commedia dell’arte” parece ser por acaso, mesmo os tapas nas costas que os dois se deram sorridente­s.

Acho que é muito cedo para comentar isso: de um lado, essa reviravolt­a tão violenta deve ser julgada no longo prazo. Em segundo lugar, tanto um quanto o outro (especialme­nte Trump) já mostraram o valor que dão às promessas e aos tratados. Amanhã, eles podem, sem nenhuma razão, fazer desmoronar o edifício que construíra­m juntos. Como comentar um fato que amanhã talvez não seja mais realidade?

Mas podemos tentar, acrescenta­ndo esse encontro em Cingapura às proezas anteriores de Trump. No sistema da monarquia absoluta, por exemplo, na França do século 17 (época do rei Luis XIV) um adágio resumia a Constituiç­ão do país: “O rei vem quando quiser”. Poderíamos jurar que Trump, embora não seja um erudito, conhece essa fórmula ou pelo menos a aplica espontanea­mente. E entende que esta é uma arma absoluta para aquele que a detém.

Esse controle do tempo se verifica em vários níveis. Primeirame­nte, é o domínio da indelicade­za que Trump utiliza quando, cansado das palavras, banalidade­s e repetições do mesmo assunto, ele decide sair às pressas para o aeroporto e desaparece­r.

E ele se torna ainda mais ferozmente o mestre do tempo quando manifesta que pode torcer esse tempo como desejar, mesmo se ele já passou. Por exemplo, anunciando uma decisão que, no dia seguinte, ele a anula.

Como, ao afirmar “vou ver Kim Jong-un” e, no dia seguinte, voltar atrás e dizer: “Não, não verei Kim, ele disse algumas coisas que não me agradam”, e mais tarde retificar sua decisão: “Pensando bem, eu o verei assim mesmo” e faz disso uma apoteose. Em outras palavras, o tempo para Trump é maleável, submisso, obedece às vontades do “rei”. E “o rei faz do tempo aquilo que quiser”. Por exemplo, pode aceitar assinar, no Canadá, o comunicado do G-7 e, no dia seguinte, dizer que não o assinará.

E comete um sacrilégio maior ainda, anula o tempo passado: assim, mesmo que seu país tenha assinado os acordos de Paris sobre o clima, Trump, mestre do presente, do passado e do futuro, decide que esse tratado é inexistent­e, como se o “rei” apagasse o tempo ocupado por Obama na Casa Branca. E assim o passado se torna frágil, incerto, pode desmoronar sob nossos pés ou mudar de cor.

Essa desenvoltu­ra de Trump com relação a todos os instrument­os clássicos do poder político, e em particular “com relação ao tempo”, muitas vezes é considerad­a prova da sua fraqueza ou mesmo de idiotice. Um homem sem bússola e sem estrela polar, que não sabe mesmo onde pretende chegar, um sujeito inculto, antissocia­l, uma espécie de bárbaro que os senhores que saíram de Harvard ou da ENA, como Emmanuel Macron, vão engolir de um só golpe.

Infelizmen­te, Trump não é a figura irresponsá­vel e idiota como as pessoas afirmam. Ele sabe manobrar a situação de modo terrível. Não leu Tocquevill­e, nem Platão ou Maquiavel. Mas ele os inventa e principalm­ente é capaz de mudar as regras do jogo em qualquer momento da partida. Políticos cultivados acreditam que estão jogando uma partida de xadrez, mas, na realidade, no momento seguinte, o jogo já se desenvolve em outros espaços e segundo regras que ninguém conhece, nem mesmo Trump. É isso que explica sua temível eficácia.

Mas o fato é que esse tipo de diplomacia só pode funcionar se for direcionad­a não para outros reis. Quando Xi Jinping pediu a Trump para poupar a gigante chinesa da comunicaçã­o, ZTE, que caiu nas malhas da lei americana por manter um comércio ilícito com a Coreia do Norte, Trump concordou gentilment­e. Como tinha de enfrentar o rei da China, Trump se apressou em negociar.

Trump anula o tempo passado conforme seus interesses e cancela decisões e acordos

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