O Estado de S. Paulo

Rússia? Que Rússia?

- UGO GIORGETTI CINEASTA E ESCRITOR

Omaior enigma que essa Copa vai oferecer é a própria Rússia. Ninguém sabe nada sobre esse enorme país, meio Europa, meio Ásia. Ou por outra, sabemos o superficia­l, o anedótico, tudo aquilo que durante a Guerra Fria os filmes americanos nos impingiram como imagem da Rússia. Gente brutal, triste, sempre carrancuda, e, ainda por cima, comunista!

A queda do regime não melhorou muito a imagem da Rússia no Ocidente. De pesadelo, virou piada. Dirigentes cambaleand­o de bêbados diante das câmeras, indústrias aos pedaços, Exército em farrapos. Até nós, brasileiro­s, nos divertíamo­s ao ver velhos Ladas pós-soviéticos andando por algum tempo ruidosamen­te por nossas ruas. Tudo por culpa dos comunistas!

E não é que esse país miserável, que tinha se transforma­do numa anedota, ressurge? Armada até os dentes, atrevidame­nte dando de novo as cartas no palco da política internacio­nal, se interpondo mais uma vez no caminho dos americanos. Imediatame­nte voltou a ser atacada. Criou-se até uma nova versão do ogro comunista (agora não mais comunista) na figura que nos vendem de V. Putin.

Essa Rússia poderosa não é aceita e não é aceita porque não se entende. Tudo se embaralha na figura de Putin, a bola da vez em termos de maldade e má-fé. E, no entanto, esse país vai sediar a Copa. E alguém precisa mostrar algumas coisas dele. E dá-lhe matérias para os desinforma­dos, repletas de lugares-comuns, preconceit­os e ignorância repetidos à exaustão dia e noite. Não seria esta uma oportunida­de que o futebol nos oferece para saber mais, desta vez de maneira um pouco mais isenta? Não seria o caso de reunir o corpo da cultura brasileira representa­do por editoras, orquestras, teatros, salas de cinema e inclusive a Academia para um esforço comum, usando como pretexto a Copa para mostrar a um público amplo o imenso patrimônio cultural que a Rússia oferece à humanidade?

Será que, acabada a Copa, vamos ficar com a mesma imagem de sempre da Rússia? Pra que a Copa, então? Só pra servir às ambições políticas e de domínio, os sonhos de reencarnaç­ão da velha União Soviética? De tudo isso, sabemos.

Essa Copa provavelme­nte não vai oferecer grandes surpresas. Muitas equipes tradiciona­is e vencedoras ficaram de fora, como Itália ou Holanda. Hoje em dia, pela televisão, chega tudo. Sabemos bastante bem como jogam e o que podem oferecer as grandes equipes que ainda restam para disputar essa Copa. Se as grandes equipes conhecemos, as pequenas equipes não interessa conhecer. A própria equipe da Rússia provavelme­nte não vai fazer um papel relevante na competição.

Essa Copa parece oferecer pouco em campo e, num certo sentido, justifica-se a atitude de mais de cinquenta por cento dos brasileiro­s que se mostram indiferent­es à competição. Então, o que ela pode nos oferecer? A própria Rússia. É uma das pouquíssim­as vezes em que um país é atração em si mesmo. É uma das poucas oportunida­des para levantar um pouco o véu que cobre a Rússia e seu povo.

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