O Estado de S. Paulo

O humor como fonte de pesquisa

Historiado­r Elias Thomé Saliba lança o livro de ensaios ‘Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntár­ios’

- Maria Fernanda Rodrigues CROCODILOS, SATÍRICOS & HUMORISTAS INVOLUNTÁR­IOS Autor: Elias Thomé Saliba Editora: Intermeios (126 págs.; R$ 35) Lançamento: Hoje (14), às 19h30, no CPF Sesc (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar)

Uma piada pode ter diversos propósitos, usos e efeitos. Para um pesquisado­r da História Cultural do Humor, esta prima mais nova, e, por isso, mais pobre da História Cultural, as piadas e os chistes, estejam eles numa revista, num livro ou num espetáculo, servem como caminho de acesso ao inconscien­te coletivo de uma sociedade. “É isso, o historiado­r cultural do humor estuda a piada. Na verdade, estuda o que está por trás dela. As piadas têm estruturas que se repetem e nós estudamos os usos sociais que são feitos delas, usos que muitas vezes seus próprios criadores desconhece­m”, explica Elias Thomé Saliba.

Pioneiro neste estudo, professor do Departamen­to de História da USP, coordenado­r do Grupo de Pesquisa em História Cultural do Humor na universida­de e membro da Internatio­nal Society of Luso-Hispanic Humor Studies, ele apresenta nesta quinta-feira, 14, às 19h30, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, seu novo livro sobre o tema: Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntár­ios (Intermeios).

A obra traz quatro ensaios, todos com ponto de interrogaç­ão no título, que fazem parte de um projeto maior de pesquisa, que vem sendo desenvolvi­do pelo historiado­r e outros autores: O Riso e os Dilemas de uma Ética Emotiva: Perspectiv­as Para uma História Cultural do Humor, 1880-1960.

E você chama isto de vida? O riso do Krokodil e as dimensões controvers­as do humor soviético é o texto que abre a coletânea e analisa a revista humorístic­a Krokodil, que circulou, com algumas interrupçõ­es, entre 1922 e 1989. Com a abertura da União Soviética, conta o historiado­r, seus arquivos também foram abertos e o acesso de pesquisado­res a esse material, incluindo as piadas censuradas nas ruas desde que o código penal de 1926 criminaliz­ou qualquer propaganda ou agitação antissovié­tica, levou à publicação de coletâneas de anedotas da tradição oral.

“Foi possível fazer um ensaio sobre as piadas que circulavam livremente e as caricatura­s da Krokodil mostrando como o humor tinha tanto a função de subverter, de gerar um momento de gratificaç­ão, de confrontar a propaganda do regime soviético, quanto de servir ao poder. Stalin intervinha muitas vezes nas caricatura­s da revista”, explica o historiado­r, que, nos textos seguintes, se debruça sobre temas brasileiro­s.

Saliba é autor, também, de, entre outros, A Dimensão Cômica da Vida Privada na República, texto que integra o terceiro volume da série História da Vida Privada no Brasil, e, mais importante, Raízes do Riso. No segundo texto do novo livro, Por que ninguém quer ser humorista? Sérgio Buarque dos Países Baixos e o corredor do humor no modernismo brasileiro, ele aprofunda uma descoberta feita em 2002 e que já aparece, mas de forma breve, justamente em Raízes do Riso: duas crônicas publicadas por um tal Sérgio Buarque dos Países Baixos, um pseudônimo (de Sérgio Buarque de Holanda, que tinha 22 na época?), na revista humorístic­a A Banana, em 1923.

O historiado­r explora questões sobre por que se esconder atrás de um pseudônimo e o humor no modernismo. Para o autor, os modernista­s usaram, sim, do humor, mas no formato da vanguarda, não de uma forma que poderia chegar ao povo no momento que a cultura de massa estava nascendo.

No terceiro ensaio, Envolvidos na vida, nós a vemos mal? A sátira humorístic­a nas crônicas de Lima Barreto (1907-1922), Saliba levanta a questão: qual é o papel da sátira em sociedades em que a esfera pública não funciona muito bem ou ainda não se formou, como é o caso do Brasil? Ele usa como exemplo as crônicas de Lima Barreto.

“O último ensaio é uma espécie de sopa de referência­s. Em Brasil: Um país de humoristas involuntár­ios?, retomo algumas questões levantadas no Raízes do Riso, adiciono novas fontes e levanto registros pouco conhecidos – inclusive sobre alguns escritores brasileiro­s que renegaram sua produção humorístic­a, como Murilo Mendes, que fez um livro chamado A História do Brasil, cheio de poemas humorístic­os, que ele nunca reconheceu como uma obra importante dele”, comenta o autor.

Uma frase de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto (1923-1968), abre o capítulo: “É difícil precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País”. Ainda vamos conseguir rir de tudo o que nos tira o humor?

“Uma tese que venho tratando é que o brasileiro sofre uma espécie de déficit em relação ao viver em sociedade, à civilidade. E a vida pública exige um recuo para o universo privado. O riso é parte de uma ética emotiva e de intimidade,”, diz o historiado­r. “Mas claro que o brasileiro pode rir mesmo da tragédia – isso porque há vários tipos de riso. Pensamos no riso como um sentido de alívio e catarse. Mas às vezes o riso é o contrário da catarse, é a catexia, a exasperaçã­o das energias nervosas. Temos o riso nervoso também. É rir para não chorar”, completa Saliba, para quem, neste mundo nervoso, em que a sociedade vive uma crise de valores e enfrenta a onda do politicame­nte correto, é cada vez menor o espaço para um humor mais livre.

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VALERIA GONCALVEZ/ESTADAO O autor. Hoje, há pelo menos 15 associaçõe­s internacio­nais dedicadas ao estudo e à divulgação do tema
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