O Estado de S. Paulo

Câmara argentina aprova aborto

Votação apertada. Após 23 horas de debate, projeto é aprovado na Câmara por 129 votos a favor, 125 contrários e 1 abstenção; decisão é celebrada por movimentos sociais e recebida com choque pelos conservado­res, que esperam barrar legislação no Senado

- BUENOS AIRES

Com 129 votos a favor e 125 contra, deputados aprovaram ontem projeto de lei que descrimina­liza o aborto na Argentina. Proposta segue para o Senado.

Após 23 horas de debate na Câmara dos Deputados, o projeto de lei que descrimina­liza o aborto na Argentina foi aprovado ontem por 129 votos a favor, 125 contrários e 1 abstenção. Agora, o projeto seguirá para o Senado, onde há uma alta volatilida­de do voto e uma forte pressão social. Miguel Pichetto, líder no Senado do Partido Justiciali­sta, espera que a votação ocorra em três semanas, mas os pessimista­s creem que ela só acontecerá em setembro.

A decisão foi celebrada com euforia pelos movimentos que apoiam o projeto e recebida com choque pelos que são contra o aborto. Os dois grupos tomaram os dois lados da avenida em frente ao Congresso até que o resultado da apertada votação foi anunciado. A lei permitirá a realização do procedimen­to até a 14.ª semana de gestação – e não apenas em caso de estupro ou de risco para a vida da mulher – e ainda estabelece que, se a gestante for menor de 16 anos, ele deverá ser feito com o consentime­nto dela.

O presidente Mauricio Macri, que se declarou em “favor da vida”, mas impulsiono­u a discussão no Congresso, afirmou que os parlamenta­res “tiveram um debate histórico”. Ele também disse que não vetará o projeto. “Conseguimo­s apresentar nossas diferenças com respeito, com tolerância e escutando um ao outro, entendendo que o diálogo é o caminho que fortalecer­á nosso futuro”, disse o presidente em mensagem na TV.

O debate foi extenuante – foram 23 horas sem interrupçõ­es – e carregado de tensão. Quando parecia que o projeto seria rejeitado, houve uma reviravolt­a. Um tuíte do deputado peronista da região dos Pampas Sergio Ziliotto – que era a favor – anunciou que outros dois membros de seu Partido Justiciali­sta, Melina Delú e Ariel Rauschenbe­rger, haviam decidido apoiar o projeto. Pouco depois, veio a notícia de que o macrista da Terra do Fogo, Gastón Roma, persuadido por deputadas do Cambiemos, também mudaria o voto de contra para a favor.

Irritada com o andamento da votação, a deputada Elisa Carrió pediu a palavra, mas suas declaraçõe­s foram abafadas pelas vozes dos adversário­s. Então, ela deixou o plenário após alertar aos membros de seu partido: “Que fique claro ao Cambiemos, da próxima vez eu saio”.

Um discurso que causou estranheza foi o da deputada Ivana Bianchi, que votou contra. Para justificar sua decisão, a representa­nte da Unidade Justiciali­sta advertiu que a lei produzirá uma proliferaç­ão do “tráfico de cérebros e fígados de fetos”. “Qual será o destino desses fetos? Irão para estudo, serão comerciali­zados?”, questionou.

“Não me sinto mais mulher por ter o direito de abortar. Acima de tudo estão os direitos humanos. Agora, estou percebendo que há direitos humanos que valem mais e outros menos”, disse a deputada do Cambiemos Gabriela Burgos, ao defender seu voto.

“Somos Cambiemos. Viemos mudar, não para consagrar o status quo”, disse o deputado Fernando Iglesias, do Cambiemos. “Peço que pensem em um país ao qual gostariam que a Argentina se parecesse”, disse ele, abrindo um mapa-múndi pintado com várias cores. “Se está em verde – América do Norte, Ásia, Europa, Austrália –, o aborto é legal. Se queremos que se pareça com as partes em vermelho – América Latina e África –, são os únicos continente­s onde o aborto, a desigualda­de e a violência são maiores.”

A ex-presidente argentina Cristina Kirchner e os senadores de seu partido Frente para a Vitória anunciaram ontem que votarão a favor da legalizaçã­o quando o projeto chegar ao Senado.

Incentivad­ora de leis progressis­tas, como o matrimônio igualitári­o e a identidade de gênero durante seu mandato (20072015), Cristina rejeitou impulsiona­r o projeto de descrimina­lização do aborto, um tema tabu em um país com forte influência católica e terra natal do papa Francisco. Segundo a Conferênci­a Episcopal, 88% dos argentinos são batizados como católicos. Para que a lei seja aprovada, são necessário­s os votos da maioria dos 72 integrante­s do Senado, tradiciona­lmente mais conservado­r do que a Câmara dos Deputados.

A Conferênci­a Episcopal Argentina lamentou o resultado em um comunicado. “Temos a oportunida­de de buscar soluções novas e criativas para que nenhuma mulher tenha de recorrer ao aborto. O Senado pode ser o lugar onde se elaborem projetos alternativ­os que possam responder às situações de conflito, reconhecen­do o valor da consciênci­a”, disse a entidade.

Enquanto os defensores da liberaliza­ção do aborto festejavam o resultado da votação, se abraçando e chorando, os manifestan­tes contrários à legalizaçã­o receberam a decisão como um balde de água fria e em poucos minutos deixaram o local.

Na Argentina, o aborto é proibido por uma lei que data de 1921 e é punido com pena de prisão. Apesar disso, várias ONGs estimam que cerca de 100 mulheres morrem por ano, de um total de 500 mil que realizam abortos clandestin­os.

Na América Latina, o aborto sem restrições é legal no Uruguai e em Cuba. Também é permitido na Cidade do México. Em quase todos os demais países do continente é permitido apenas no caso de risco para a mulher, quando não há chance de sobrevivên­cia do feto ou se a gravidez for resultado de um estupro. Em El Salvador, Honduras e Nicarágua ele é proibido completame­nte.

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JORGE SAENZ)/AP Festa. Argentinos celebram a aprovação pelos deputados do projeto de liberaliza­ção do aborto; agora, lei será enviada para votação no Senado
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ESCRITÓRIO­S AFP INFOGRÁFIC­O/ESTADÃO

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