O Estado de S. Paulo

A força do técnico do Uruguai

Mesmo com movimentos limitados por uma doença neurológic­a, Oscar Tabárez disputa sua 4ª Copa à frente do Uruguai.

- Gonçalo Junior ENVIADO ESPECIAL / ECATERIMBU­RGO

É uma doença crônica. Deixo tudo nas mãos dos fisioterap­eutas, com os médicos Oscar Tabárez TÉCNICO URUGUAIO

Com passos bambos, Oscar Tabárez percorre a linha lateral da arena Ecaterimbu­rgo. Na mão esquerda, uma muleta de metal sustenta todo o peso do corpo. A perna responsáve­l por muitos desarmes na carreira do zagueiro dos anos 1970 hoje fica inerte e solta no ar. O técnico que fez o Uruguai se reerguer no futebol mundial caminha mal, pois sofre por causa de uma doença neurológic­a.

Nos jogos, são os membros de sua comissão técnica que correm de um lado para o outro para levar instruções. Resiliente, o senhor de 71 anos nunca se queixou de dor, mas fica sentadinho no banco. Tabárez está em um momento de bem-estar físico, como se a doença tivesse dado uma bandeira branca para que ele siga em sua quarta Copa. Sua mão não treme na hora de segurar o microfone; ele fala pausadamen­te, não esquece as palavras. Só precisa de ajuda na hora de se levantar da cadeira.

Falar da doença do técnico virou heresia para os uruguaios. Questionad­o pelo Estado sobre seu estado de saúde, após a entrevista coletiva, ele disse secamente que estava bem. E matou a pergunta ali. A Associação Uruguaia de Futebol também não quis comentar a situação do treinador. “É uma doença crônica. Está um pouco melhor e às vezes há certas oscilações. Deixo tudo nas mãos dos fisioterap­eutas, com os médicos”, detalhou Tabárez em 2016.

Os momentos bravos da doença balançaram a nação inteira. Quando ele entrou de muletas no estádio Centenário, visivelmen­te debilitado e fragilizad­o, os uruguaios começaram a chorar nas arquibanca­das. Isso ocorreu em um jogo contra o Equador pelas Eliminatór­ias para Copa no Brasil.

Durante a Copa América dos Estados Unidos, Tabárez foi visto dirigindo treinos no comando de um carrinho elétrico, desses usados para retirar jogadores lesionados. Ia para lá e para cá driblando sua própria limitação e a própria angústia.

Foi depois desse torneio e também pela eliminação vexatória diante da Venezuela que começou o zunzunzum de que ele deixaria a seleção de seu país. Novamente, a nação uruguaia se viu em prantos, pois não havia um substituto para Oscar Tabárez. A maré ruim passou, e o técnico permaneceu.

Não é por causa das muletas que Oscar Washington Tabárez é estimado pe- los uruguaios. Isso já soma quatro décadas. Depois de ter sido um zagueiro de times medianos e abandonar a carreira por causa de dores no joelho no fim dos anos 1970, ele virou professor de uma escola primária de Montevidéu. Mas o orçamento não fechava no fim do mês. Para equilibrar as contas, passou a ser professor e treinador. Metade do dia na sala; metade no campo. Em 1983, levou o time sub-20 do Uruguai ao título dos Jogos Pan-Americanos, em Caracas. Hoje, sua sala de aula é o campo. Conseguiu juntar os dois. E também a sala de imprensa. “A Copa é um momento de sonho para o torcedor, para todo o nosso país. Mas também é preciso estar preparado para fazer do sonho algo concreto. E estamos preparados para isso”, diz o senhor grisalho, com os óculos na ponta do nariz.

Quando ele fala, ninguém respira. Tabárez personific­a o professor que a gente nunca esqueceu da infância. O mais espirituos­o, o mais sábio, o mais legal. Foi daí que veio o apelido “Maestro”, mestre, em espanhol. “De todos os treinadore­s que eu já conheci, ele é o que melhor se expressa”, elogia o ex-zagueiro Diego Lugano.

Tabárez tira o pó de um termo que está guardado nas prateleira­s do mundo moderno: sábio. Aquele cara que merece ser ouvido, que leva sua doença para aonde for, que ensina.

Mas o termo “Maestro” pode ser usado com seu sentido na língua portuguesa também. Tabárez coleciona resultados históricos, como o 4.º lugar no Mundial da África do Sul e o título da Copa América na Argentina. Mais que as taças, ele faz um processo de recolocar o Uruguai entre os grandes. Não criou nenhuma fórmula mágica: fortaleceu as categorias de base e procurou preencher as lacunas do futebol uruguaio, formando um time que saiba marcar, mas que também consiga lapidar uma boa jogada.

A vida do Maestro não é só de luzes. Sua aventura na Europa, comandando times como Cagliari e Oviedo, foi bem discreta. Seu maior feito foi ter chegado ao poderoso Milan, em 1996, mas ele não teve muito sucesso e acabou substituíd­o após alguns meses pelo lendário Arrigo Sacchi. Uma relação extraconju­gal, que se tornou um escândalo no Uruguai, também costuma ser colocada embaixo do tapete nas biografias autorizada­s do senhor de 71 anos.

Confusão. Faltou explicar o que é essa doença. O problema de Tabárez é neurológic­o. É uma neuropatia crônica, muito parecida com a síndrome de Guillain-Barré. “É uma doença autoimune em que o sistema de defesa do nosso corpo começa a combater os nervos periférico­s”, diz a neurologis­ta Aline Turbino, membro da Sociedade Brasileira de Neurologia. Trata-se de uma espécie de confusão do sistema imunológic­o.

Paulo Olzon, clínico e infectolog­ista da Unifesp, explica que os primeiros sintomas são a sensação de formigamen­to. “Com o tempo, aparece um quadro de diminuição de força. Os sintomas começam nos pés e podem chegar ao abdômen nos casos mais graves”, diz o especialis­ta. “Mas ela costuma evoluir para a cura na maioria dos casos.”

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Ajuda. Treinador usa muleta para caminhar
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JORGE GUERRERO/AFP

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