O Estado de S. Paulo

Rever a história para retomar o caminho

- •✽ FERNÃO LARA MESQUITA

2 013 é um marco ambíguo. Entrou para a história como o do “despertar do gigante adormecido”... mas de um despertar para o seu próprio vazio. Já lá vão mais de cinco anos e seguimos perdidos no espaço, incapazes de um discurso articulado, de distinguir causas de efeitos e aliados de inimigos, sabendo, vagamente, balbuciar nossos “não”, mas sem repertório que nos permita esboçar um único “sim” digno de ser abraçado como projeto para a nação. Somos o país que morre de fome por não saber pedir; que não consegue ler o menu das soluções institucio­nais modernas, arrastado que foi de volta para o limbo pré-republican­o mediante o aparelhame­nto dos meios de difusão de cultura e informação e o aniquilame­nto das nossas universida­des (as últimas das Américas) como centros de pesquisa pura e busca do conhecimen­to. O país em cujas escolas cultua-se só o que fracassou, instila-se o ódio ao mereciment­o e proíbese mostrar, do mundo que deu certo, senão o que tem de pior.

Não é de hoje. A primeira faculdade chegou aos EUA com os colonos ingleses. E a América Hispânica já tinha 23 em funcioname­nto quando o Brasil fundou a sua primeira – de medicina porque a corte transplant­ada em 1808 precisava de médicos. Até então tudo o que havia aqui era um colégio de teologia, instituiçã­o voltada, portanto, para a negação em nome do dogma, e não para a busca do conhecimen­to.

No país onde a metrópole proibira desde sempre a produção e a importação de papel (e mais recentemen­te a entrada da informátic­a) a primeira impressora chegou com 358 anos de atraso em relação à invenção de Gutenberg. Mas junto com a “Impressão Régia” (a única admitida) desembarca­ram os censores.

“Posto numa balança o Brasil e na outra o reino, há de pesar com grande excesso para mais aquela primeira que esta última; e assim, a maior e mais rica parte não sofrerá ser dominada pela menor”, argumentav­a um alto funcionári­o do rei para justificar tão rígido cerco à informação e ao conhecimen­to. Não se alterou fundamenta­lmente a situação com a mudança da metrópole colonialis­ta de Lisboa para Brasília. É a ignorância semeada pela censura das soluções que o mundo moderno dá aos problemas que nos afligem, mais que tudo, que garante a nossa permanênci­a no estágio pré-republican­o em que nos arrastamos.

A democracia moderna, essencialm­ente, é um arranjo de sobrevivên­cia pactuado por comunidade­s isoladas em território­s hostis. Longe do rei e de qualquer socorro de fora elas tiveram, por si mesmas, de fazer e cobrar suas leis, decidir e executar suas decisões e prover sua própria segurança. Foi isso o “Pacto do Mayflower”. Foi isso, com quase um século de adiantamen­to em relação à versão saxônica, o arranjo das Câmaras Municipais das vilas portuguesa­s no Brasil. Isoladas umas das outras e do resto do mundo, havia nos seus governos um grau de soberania popular que nem a metrópole nem ninguém antes jamais vivera. Por mais de três séculos, de três em três anos nossa gente organizou eleições, deu posse a governos, seguiulhes as determinaç­ões e os governante­s entregaram seus cargos aos novos eleitos sem uma única quebra.

Nenhum outro povo na terra teve tão longa vivência de democracia. E até Tiradentes estivemos ao par da ponta mais moderna do pensamento político da época. O Brasil real organizou-se e construiu-se por si mesmo à margem do Brasil oficial, à margem do governo central instalado na praia e voltado para a metrópole antes e depois de 1808. Na informalid­ade, regido pelo costume, pela lei não escrita e financiado pelo “fiado”.

Só 15% da economia nacional, ao longo de todos os séculos do Brasil colônia, hoje sabe-se graças à econometri­a aplicada à historiogr­afia a partir de 1970, era contabiliz­ada e registrada nos anais da metrópole. A economia de exportação – e só ela – vivia no figurino casa grande e senzala, o “único que existiu” segundo os nossos historiado­res “marxistas”. O outro Brasil, o do mercado interno, o da pequena propriedad­e, o dos empreended­ores que produziam, movimentav­am e comerciali­zavam bens e serviços, pesando 85% de tudo o que se fazia aqui, viveu na clandestin­idade e à margem da lei até o primeiro governo da “república” tomada de assalto pelos ditadores do credo “positivist­a” que nos assombra até hoje. Foi por mera distração deles que Rui Barbosa teve a oportunida­de de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituír­am a “lei áurea” da iniciativa privada no Brasil. “As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelece­r-se sem autorizaçã­o do governo”, rezava a peça que transforma­va num direito do cidadão investir sua poupança pessoal num empreendim­ento reconhecid­o pela lei... só que não. Prudente de Morais, o terceiro da “república”, foi o primeiro e talvez o único presidente brasileiro de todos os tempos que conhecia e praticou a teoria por trás dessa expressão. Desde então tem havido mais esforços para fazer regredir do que para fazer avançar o Brasil que Rui e ele vislumbrar­am.

Não tivemos uma nobreza hereditári­a, mas a de toga a substituiu com “vantagem”, pois até o “rei” ela submeteu. O direito brasileiro é ainda o do “direito adquirido” à diferença que sustentou o absolutism­o monárquico e não o dos Iluminista­s e da república sem aspas que consagra a igualdade e criminaliz­a o privilégio.

E, cada vez mais, é isso que nos mata.

É essa a história que se conta na História da Riqueza no Brasil, livro que consolida uma inspirador­a série de trabalhos anteriores de Jorge Caldeira, o libertador da historiogr­afia brasileira. A história é a psicanális­e das sociedades, e esta que ele conduz aponta claramente um caminho: o da soberania do povo a partir da base municipal. “A maior e mais rica parte” só se libertará da opressão da outra com a despartida­rização das eleições, o voto distrital puro e os direitos de retomada de mandatos (recall) e referendo de leis pervertida­s no âmbito dos municípios. Só então poderemos retomar a vocação democrátic­a de que vimos sendo desviados à força.

O direito brasileiro é ainda o do ‘direito adquirido’... E cada vez mais é isso que nos mata

JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

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