O passado no presente
Ao recolher material para seu livro Memórias em Linha Reta, o ex-governador de São Paulo André Franco Montoro teve a ideia de consultar a edição do Estado com a data de seu nascimento: 14 de julho de 1916.
A essência do noticiário nacional soa curiosamente familiar. Havia uma denúncia contra o governo do presidente Wenceslau Braz por permitir que funcionários públicos e suas famílias usassem carros oficiais em afazeres domésticos. O presidente da Central (futura Estrada de Ferro Central do Brasil) defendia-se das acusações de ter desvirtuado uma concorrência de compra de carvão em favor de fornecedores que seriam, na verdade, seus testas de ferro. Na seção de polêmicas, discutia-se a conveniência de adotar o imposto único.
Não há muito que surpreender, pois, como é sabido, os temas do debate nacional têm duração incerta. Alguns apaixonam gerações e subitamente desaparecem, como recentemente o monopólio estatal do petróleo, submerso sem maiores protestos nas concessões do pré-sal. Outros parecem imutáveis e irremovíveis. Nesta categoria entram as polêmicas sobre o papel maior ou menor do Estado como indutor do crescimento econômico.
Já experimentamos de tudo um pouco. Os primeiros governos militares, no início da República, apostaram tudo no incentivo industrial, chegando a oferecer a garantia de juros, pela qual o governo assegurava que, mesmo se as novas empresas apresentassem prejuízo, pagaria juros aos acionistas. O resultado foi a orgia monetária do chamado “encilhamento”, seguida pela política de austeridade de Campos Sales (1898-1902). Episódios análogos, embora menos espetaculares, voltariam ao longo da vida republicana. Os exemplos mais marcantes foram a política dos “50 anos em 5” do presidente Juscelino Kubitschek e o chamado milagre brasileiro dos anos 70.
Essas experiências acabaram por fatores externos e internos adversos cuja importância relativa deu margem a inúmeras discussões. Juscelino, como observou Roberto Campos, mostrava marcada relutância em discutir medidas de combate à inflação e a ele se atribui o início da espiral inflacionária que atormentaria os brasileiros até a vitória do Plano Real. Já o fim do milagre brasileiro dos anos 70 teria sido decretado no Oriente Médio quando os países produtores elevaram o preço do barril de US$ 3,37 para US$ 11,25.
Declarada a crise atual, volta-se a discutir qual foi sua origem e, sobretudo, como superá-la. Uma ideia muito popular durante séculos foi que oferta e demanda se ajustariam automaticamente e qualquer intervenção do governo teria efeitos negativos. Vulgarmente conhecida como “muito faz quem não atrapalha”, essa tese foi largamente difundida, em termos acadêmicos desde 1776 com a publicação de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, e por outros, como Jean-Baptiste Say, aos quais se atribuiu a expressão consagrada “laissez-faire”.
O “laissez-faire” sofreu um rude golpe na crise de 1929, quando os Estados Unidos passaram quatro anos mergulhados nas falências e no desemprego. Cansado de esperar que o mercado se recuperasse sozinho, o presidente Franklin Delano Roosevelt lançou em 1933 o New Deal, conjunto de medidas intervencionistas entre as quais sobressaíam investimentos maciços em obras públicas como construção de hidrelétricas, barragens, pontes hospitais, escolas e aeroportos, gerando milhões de empregos.
A base teórica para nova política coube a John Maynard Keynes, autor da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Keynes perdeu boa parte de sua influência no início dos anos 80, com a ascensão do monetarismo e da desregulamentação financeira. Como tudo isso desembocou na crise de 2008-2009, Keynes voltou à moda.
Voltou igualmente à atualidade o debate entre Roberto Simonsen e Eugenio Gudin, considerado por muitos o mais célebre debate de ideias entre economistas brasileiros. O leitor interessado pode encontrar nas bibliotecas a íntegra das ideias expostas por ambos em 1944-1945. Basta folhear algumas páginas para perceber que os temas presentes na grande discussão atual sobre o papel do Estado como indutor do progresso econômico já era tratada naquela época, sob outros nomes, mas com os mesmos argumentos. Simonsen, planejador e intervencionista opunha-se ao liberalismo clássico de Gudin.
Mas se o tema é antigo, seu interesse sempre reaparece na véspera das eleições enriquecido pela análise contraditória de acontecimentos recentes e pelo gosto de ver cada um dos oponentes fazer a caricatura dos argumentos contrários. Quando se desfizer o nevoeiro que envolve atualmente a política brasileira saberemos quem são os candidatos presidenciais e como propõem tratar do assunto. O tempo dirá.
o tempo, aliás, tem-se mostrado rico em surpresas e contradições. novidades excelentes em si mesmas, como o aumento da expectativa de vida, mostraram-se desastrosas para a contabilidade nacional. o atual governo brasileiro tentou, sem êxito, aprovar a reforma da previdência. numerosos outros países estão envoltos na mesma e inglória guerra entre a vontade política e a matemática.
A Grécia, dividida entre as exigências do FMI e a resistência popular às medidas de austeridades, perdeu em poucos anos parte substancial de seu PIB. No Brasil a embriaguês dos “milagres” não tem compensado a ressaca quando eles se desfazem no desequilíbrio das contas, a tal ponto que alguns governos estaduais já não conseguem pagar os salários de seus próprios funcionários.
Como consolo poderemos sempre voltar a velhos temas. Em março foi instaurada na Câmara, com o apoio de 215 deputados, a Frente Parlamentar Mista do Imposto Único Federal (IUF). Depois de um século, a polêmica prossegue.
Já vivemos de tudo um pouco, mas há temas do debate nacional que parecem imutáveis