O Estado de S. Paulo

Com o rock nas veias

Com fama de rebelde e tatuagens, técnico se inspira na música para reger sua equipe

- As Copas em minha vida Gonçalo Junior ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU

Dia 14 de junho de 1982, Brasil 2 a 1 URSS, gol do Sócrates e um golaço do meu ídolo Eder. Assim começa minha história com as Copas do Mundo, 6 anos de idade.

Tenho poucas lembranças daquele mundial. Para variar um pouco, eu estava na rua jogando bola com meus primos, escutando pelo rádio da Kombi do meu tio a derrota para a Itália. Apesar de muitos falarem, de Zico, Falcão e Sócrates, naquele momento eu só queria ser o Eder...

Na Copa de 86, eu tinha 10 anos, jogava futsal no Corinthian­s. Lembro muito bem da bomba do Júlio Cesar, dos golaços do Josimar, da tranquilid­ade do dr. Sócrates no gol contra a Espanha, da genialidad­e do Careca e do maestro Junior no meio-campo e do pênalti perdido pelo Zico.

Copa de 90, lembro da polêmica convocação do Romário, da era Dunga e principalm­ente da derrota para a Argentina.

Copa de 94, a primeira em que me senti dentro da seleção, já era jogador profission­al, havia enfrentado muitos dos que estavam ali, Zinho, Cafu, Zetti, meu amigo e companheir­o de Corinthian­s Viola, Leonardo, Mazinho, Müller e Ronaldo. Meu nervosismo foi tanto que, na cobrança dos pênaltis, fui dar uma volta de carro – só comemorei quando vi as pessoas nas ruas festejando.

A Copa de 98 foi a mais difícil para mim. Estive muito próximo de disputar esse Mundial, infelizmen­te não fui chamado – a derrota para Argentina em pleno Maracanã e a minha péssima atuação pesaram na escolha.

A Copa de 2002 foi a que torci para meu amigo Ronaldo. Tive a honra de jogar com ele na Inter de Milão, de 1997 a 99, e também na seleção. Ronaldo me fez entender a diferença entre o grande jogador e o craque.

Na Copa de 2006, meus sentimento­s pelo futebol haviam mudado, estava na fase de transição entre parar de jogar ou não. Foi a minha primeira Copa como comentaris­ta, a expectativ­a era o título, mas perdemos mais uma vez para a França.

A Copa de 2010 foi inesquecív­el. Eu tinha um ano de aposentado­ria do futebol, minha atenção era para as transmissõ­es no rádio. A responsabi­lidade era outra – agora eu não era o julgado, era o formador de opinião.

Copa de 2014, trabalho dobrado, a voz no rádio ganha um rosto na televisão, mais uma responsabi­lidade, mais um sonho realizado. Minha esposa, que não entende nada de futebol, entra no clima, bandeiras do Brasil na janela, cornetas e uma alegria que não lhe pertence, já que ela não entende nada de futebol. Após o terceiro gol da Alemanha, ela recolheu bandeiras e cornetas, desligou a televisão e não se falou mais de Copa do Mundo naquele dia. Sem dúvida nenhuma, foi a derrota de 7 a 1 para a Alemanha em pleno Brasil que fez com que definitiva­mente Barbosa, o goleiro da Copa de 1950, pudesse descansar.

Copa de 2018, véspera da nossa estreia perante a Suíça, o Brasil está frio, não sinto aquela empolgação de Mundial, ruas pintadas, bandeirinh­as amarradas nos postes, coisa rara de se ver nos dias de hoje. Nosso País vive um péssimo momento político, a CBF nos envergonha com seus ex-presidente­s envolvidos em escândalos da corrupção. Tite é o responsáve­l por nos reaproxima­r da camisa verde-amarela.

A vida mudou, o futebol mudou, a forma como olhamos para a seleção não é mais a mesma. Hoje, Marcelo não é o lateral da seleção: é o lateral do Real Madrid. O Coutinho é do Barcelona, o Neymar é do PSG e a seleção é do Tite. Torço muito para que, ao final dessa Copa, a seleção brasileira volte a ser de quem ela realmente pertence. Se o técnico Jorge Sampaoli pudesse escolher uma música para tocar na estreia da Argentina na Copa hoje, diante da Islândia, provavelme­nte ele escolheria uma dos Callejeros. Ele gosta tanto do verso “Não escuto e sigo por que muito do que é proibido me faz feliz” que fez questão de tatuá-lo no braço esquerdo. Um roqueiro tatuado, com fama de rebelde e encrenquei­ro, pretende tirar a Argentina do atoleiro de 25 anos sem taças e fazer Messi campeão.

No antebraço direito, o treinador escreveu o nome “Outubro”, disco da banda Los Redondos. Na esquerda, o treinador ainda tem as marcas dos grupos Callejeros, que acabou em 2010, e Don Osvaldo, seu sucessor. Existe ainda a frase “Educar é combater. O silêncio não é meu idioma”.

Em abril, ele surpreende­u os ouvintes da rádio argentina Mega ao ligar e pedir uma música ao vivo. Foi no programa matinal Reloj de Plastilina. Ele pediu a canção do grupo La Renga chamada Triste canção de amor. Todas essas bandas são de rock argentino. A preferida de Sampaoli tem letras politizada­s, que retratam a vida na periferia de Buenos Aires.

Para os padrões brasileiro­s, rock, tatuagem e técnico de futebol são palavras que não cabem no mesmo verso musical. Não ornam. Mas, com Sampaoli, é diferente. Ele fez uma ponte entre suas duas paixões: o rock argentino de raiz e o futebol.

A concentraç­ão da seleção em Bronnitsy foi decorada com versos dessas canções. Muitas falam da força coletiva, união, temas motivacion­ais e até de assuntos místicos. A banda Los Espíritus é a mais presente.

A ideia de decorar a concentraç­ão com frases inspirador­as não é nova. Quando a equipe ficou concentrad­a na Cidade do Galo, em 2014, a história foi a mesma. A diferença é que não havia letras de rock. As frases eram como “23 viajam, 40 milhões apoiam. Até a final”, “A esperança é o caminho” e “A vitória é o destino”. Sampaoli, portanto, subiu um tom. “O rock e o futebol precisam da mesma energia”, costuma dizer o treinador. “Trabalham o corpo e a mente ao mesmo tempo.”

Polêmica. A trajetória dos Callejeros é polêmica. Como era caracterís­tico em seus shows, o grupo fazia uso de artefatos pirotécnic­os, o que causou uma tragédia na casa noturna República Cromañón. Morreram quase 200 pessoas. Em 2009, os músicos foram absolvidos. Em 2011, porém, a sentença foi revista e os integrante­s da banda, responsabi­lizados. Atualmente Pato Fontanet, ex-líder e vocalista do grupo, está preso. Sampaoli criticou a condenação várias vezes.

Rock e futebol também são o fio condutor do novo livro de Sampaoli. Mis latidos. Ideas sobre a cultura do jogo resume a filosofia de trabalho e de vida do treinador campeão da Copa América. O livro é dinâmico, nervoso, frases curtas e aceleradas, como suas idas e voltas constantes na beirada do campo. Ou como uma letra de rock.

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JUAN MABROMATA/AFP Estilo. Jorge Sampaoli e seu jeito peculiar na equipe argentina

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