O Estado de S. Paulo

Na Macedônia, o ‘paraíso’ das notícias falsas

Fontes de informação falsa no Leste Europeu resistem à pressão de gigantes da web

- Andrei Netto

Jovens resistem às restrições de gigantes da internet e continuam a ganhar dinheiro produzindo notícias falsas, informa Andrei Netto, enviado especial a Veles, cidade da Macedônia que se tornou o “paraíso das fake news”.

Nas últimas notícias de um site de política destinado ao público americano, os destaques de sexta-feira foram “os progressos obtidos com a Coreia do Norte”, “a hostilidad­e dos democratas em relação aos cristãos”, “a guerra pela alma da América” e Donald Trump “revelando a verdade sobre o Canadá”. O “editor-chefe” da publicação, Viktor T., tem 21 anos e é estudante do terceiro ano da Faculdade de Economia. Suas “reportagen­s” foram feitas em duas madrugadas, trabalhand­o sozinho entre uma e duas horas por dia, em seu laptop, no seu quarto e na casa de seus pais, situada na cidade de Veles, no interior da Macedônia.

O universitá­rio é um dos “editores” de sites de fake news, onipresent­es em redes sociais como Facebook, Twitter e WhatsApp e protagonis­tas de um escândalo político nos EUA em 2016, na eleição de Trump à Casa Branca. Um ano e meio depois, jovens como Viktor resistem às restrições impostas pelos gigantes da internet, em especial Google e Facebook, e ainda ganham dinheiro alimentand­o a rede com as notícias falsas que desequilib­ram o debate político em diferentes países.

“Google e Facebook apertaram o cerco, mas nós usamos diferentes contas com perfis falsos, situadas nos EUA, com endereços locais, VPN, etc”, explica o jovem. “Eu tenho entre 30 a 40 perfis fakes no Facebook e os uso para compartilh­ar meu conteúdo em vários grupos. Tenho 100 mil fãs no Facebook”, sorri Viktor, que diz ter descoberto “o jeito perfeito de ganhar muito dinheiro em um curto espaço de tempo” copiando artigos reais, trocando os títulos, às vezes mudando os textos.

O Estado esteve ao longo da semana em Skopje, a capital, e Veles, uma cidade de 57 mil habitantes no centro da Macedônia, um dos países dos Bálcãs, a região mais pobre da Europa. Desde 2016, a cidade industrial produtora de cerâmica, uma das mais poluídas do continente, tornou-se conhecida entre americanos e europeus como a “indústria das notícias falsas”. Segundo o jornal The Guardian, o primeiro a revelar a concentraç­ão de autores de fake news na região, em 2016, pelo menos 150 domínios de internet de supostos sites de política americana haviam sido registrado­s na cidade.

Segundo os próprios autores, entretanto, o problema é bem mais profundo. No auge da indústria da mentira, entre o segundo semestre de 2016 e o primeiro de 2017 – durante as eleições americanas e depois da posse de Trump – mais de mil sites de notícias falsas operavam na Macedônia, dos quais cerca de metade em Veles.

Eram páginas de política dos EUA, mas também de fofocas sobre personalid­ades mundiais, esportes, automóveis e “alimentaçã­o saudável”, outro tema que fez milionário­s em Veles. Escritos em inglês “aproximati­vo”, os textos são em sua maioria plágios de outros encontrado­s na web, com frequência em blogs de extrema direita americana, pró-Trump. Uma vez copiados, são reescritos com manchetes escandalos­as ou inverídica­s pelos jovens macedônios, a maioria de 16 a 24 anos, sem ocupação ou em empregos precários – em uma região na qual quase 50% da faixa etária não encontra trabalho.

Hoje, na cidade da ex-Iugoslávia, algumas dezenas de jovens que fizeram pequenas fortunas ao longo dos últimos anos circulam em automóveis de luxo, como Land Rover, Audi e BMW. Outros investiram em bares e boates, que servem de ponto de encontro para os autores de fake news, seus amigos e namoradas. O contraste é marcante: enquanto o salário médio do país é de ¤ 250 – cerca de R$ 1 mil –, Viktor faz entre ¤ 350 e ¤ 1 mil por mês “trabalhand­o” entre cinco e 10 horas por semana.

Seus colegas que “levam o negócio a sério” e passam madrugadas empenhados em produzir fake news e compartilh­ar textos em seus perfis falsos nas redes sociais, chegam a ganhar ¤ 10 mil, ¤ 12 mil por mês. Em alguns casos, “muito mais”, segundo ele – fala-se em até ¤ 30 mil por mês.

Esses valores são arrecadado­s graças ao sistema de remuneraçã­o do Google AdSense, o serviço publicitár­io do gigante de internet dos EUA, que injeta publicidad­e nos sites mais populares da rede – sejam profission­ais ou de notícias falsas. De olho na maior audiência possível, e nos temas que mais criam “engajament­o” do público, Trump e os temas da extrema direita americana se tornaram o assunto favorito dos jovens em Veles.

Pressionad­os pelo escândalo, Google e Facebook reagiram no último ano, fechando sites e perfis registrado­s na Macedônia. “Hoje, o negócio está em declínio. Há pessoas que tinham a receber ¤ 80 mil, ¤ 100 mil de Google AdSense e foram bloqueados, perdendo o dinheiro. Só pelo que ouvi, estimo em mais ou menos ¤ 1 milhão perdido em cerca de 300 sites bloqueados só em Veles”, avalia Hristijan Gochevski, de 21 anos, que optou por trabalhar em um bar da cidade e em um teatro de Skopje a viver de “fake news”, depois de uma tentativa frustrada em 2016.

O declínio provocado pela intervençã­o de Google e Facebook é confirmado por Mirko Ceselkoski, fundador de uma escola de web design em Skopje. Definido por alguns jovens da região como um dos mentores da indústria de fake news, Ceselkoski diz em sua página pessoal “controlar 15 milhões de fãs no Facebook” e “mais de 300 mil visitantes únicos diários” em seus sites. Seus mais de 1,3 mil estudantes, diz ele, já somam mais de 100 milhões de fãs no Facebook e 20 milhões de visitantes únicos por mês, chegando “a mais de US$ 7 milhões em remuneraçã­o por mês”.

À reportagem, o professor confirmou que o “Facebook agora está fazendo um bom trabalho para deletar fake news de política”. “Muitas pessoas que trabalhava­m na área estão tendo seus perfis pessoais bloqueados. Há investigaç­ões em curso nos últimos 12 meses”, diz Ceselkoski. “Fake news foi uma brecha no sistema. Está caindo em cliques e em renda também.” Viktor dá risada quando questionad­o sobre o declínio dos sites de fake news. Segundo seus cálculos, pelo menos 200 ainda estão operaciona­is na cidade.

Um proprietár­io de café em Veles, que prefere não ser identifica­do, reforça que a atividade está em declínio. “Nos primeiros seis meses do governo Trump, o negócio ainda era forte. Mas depois começou a cair, ainda que reste muita gente trabalhand­o com fake news”, diz o jovem empresário, que também é dono de um bar usado como ponto de encontro pelos criadores de fake news.

Ironicamen­te, em um cartaz fixado em um pilar do bar, lê-se que entre as normas da casa está a de “sempre dizer a verdade”. “Google e Facebook entenderam que as pessoas de Veles estavam ganhando dinheiro com fake news. Essas pessoas foram bloqueadas e perderam tudo. A coisa parou”, diz o empresário. “Sem dinheiro, sem festa. Agora, muita gente está tentando, mas a renda caiu muito, talvez seja hoje 10% do que era. Os que existem, criaram perfis americanos falsos, porque os perfis macedônios foram apagados.

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ANDREI NETTO/ESTADÃO Diga a verdade. Jovens em bar usado para produção de fake news em Veles; entre as regras de convivênci­a publicadas em cartaz, está ‘não mentir’
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