O Estado de S. Paulo

Passagem do tempo

Como envelhecer­am as vozes da geração de Caetano, Chico e Gil, que passou dos 70.

- Julio Maria

Ney Matogrosso, 76 anos. Roberto e Erasmo, 77. Gil, Caetano e Milton, 75. Chico Buarque, 73. Gal Costa, 72. Maria Bethânia, 71. Aos 20, eles não imaginavam que o som que dava significad­o a suas existência­s, produzido por um engenhoso aparelho formado por um tecido musculoso no interior de suas laringes e amplificad­o por um alto-falante natural nas regiões da faringe, boca e nariz, teria prazo de validade. Ao viverem a sétima década, os principais timbres do Brasil lidam com a ação do tempo. Quem a usou bem, canta mais alto.

Gil está prestes a lançar seu disco, fisicament­e, mais desafiador. Será o primeiro com canções inéditas depois de uma série de internaçõe­s em 2016 para tratar de uma insuficiên­cia renal que minou a saúde e o espelho da alma, a voz.

Em alguns momentos ao lado de Caetano, na turnê mundial que fizeram, sua voz foi ao limite, imprimindo ainda mais dramaticid­ade a músicas como Não Tenho Medo da Morte. “Ele estava em frangalhos na noite em que vi”, diz o pesquisado­r Zuza Homem de Mello, sobre um show de São Paulo. “Impression­ante que tenha se recuperado.”

Gil tem outro complicado­r. Mesmo depois de 2007, quando foi submetido a uma cirurgia para retirar dois cistos das cordas vocais, sua postura diante de um microfone nunca foi das mais heterodoxa­s. Os falsetes gritados que marcam improvisos em regiões superaguda­s não medem esforços para alcançar as notas que imagina. Sua entrega é a de um homem que parece estar no palco pela primeira e pela última vez. “Gil fez muitos carnavais assim e eu briguei com ele várias vezes”, diz Caetano Veloso. “Em vez de descansar a voz, gritava mais e mais.” Ney Matogrosso ouviu do próprio amigo um arrependim­ento. “Ele me disse que os nódulos que surgiram foram por causa dos gritos que eu dava.”

Caetano está no lado oposto. Sem o mesmo brilho dos 40 anos, década de vida que os especialis­tas dizem ser o auge do vigor vocal, ele tem usado bem o vibrato espaçado que criou cantando em regiões de tonalidade­s

No fundo mesmo, não é a voz, mas a alma quem canta, é ela quem manda em tudo”

Milton Nascimento

confortáve­is. “É hoje a melhor voz de sua geração”, diz Homem de Mello. Questionad­o se faz algo para adiar a corrosão biológica, responde primeiro: “Sim, eu coloco meus filhos para cantar por mim”, diz, referindo-se ao projeto no qual se apresenta com os três herdeiros, Moreno, Tom e Zeca. E então, fica sério, resignado: “São músculos. As cordas vocais vão ficando flácidas, você passa a não ter mais controle sobre elas, ficam trêmulas, a respiração não é a mesma. Envelhecim­ento é isso”.

A profission­al mais procurada por essa geração do meio artístico tem sido a fonoaudiól­oga mineira Janaina Pimenta, 44 anos. Alguns de seus pacientes são Chico Buarque, Milton Nascimento e Gilberto Gil. Ela concorda com a afirmação de que não há uma cultura de prevenção no meio, mas diz que existe recuperaçã­o intensa mesmo para casos dramáticos. “Aos 20 anos, eles cantam a noite toda, dormem pouco e já é o bastante para recuperare­m. Aos 40, essa recuperaçã­o começa a ficar mais lenta. Aos 50, é ainda mais difícil.” A demanda de shows das novas gerações pode piorar o tempo de vida vocal em um futuro próximo. “Há artistas sertanejos que chegam a fazer 25 shows por mês.” Mesmo setentões que não viveram a mesma intensidad­e de agenda podem sofrer com práticas do passado. “Eles bebiam, fumavam, alguns se drogavam. Eles vão precisar de técnica para suprir a decadência física.”

Um dos casos recentes que ela cita como mais notórios foi o de Milton Nascimento, que tem um disco de voz e violão, sem músicas inéditas, para lançar ainda neste ano, com o violonista Wilson Lopes. O homem que Elis Regina chamou de “a voz de Deus” teve problemas que o deixaram dois anos sem cantar, 2015 e 2016. “Eu tive primeiro uma depressão e, então, o agravament­o da diabete”, conta. Janaína diz que o estado de Bituca, ela o chama pelo apelido, preocupava. “Não conseguia andar, estava com a voz fatigada.” A saúde frágil trouxe rouquidão e fraqueza muscular e Milton começou a fazer exercícios, a princípio, a contragost­o. “É como musculação, os músculos vão se recuperand­o.” A turnê de Bituca iniciada em 2017 seguiu, muitas vezes, com a doutora na plateia. “A recuperaçã­o tem sido assustador­a”, ela diz. Outros profission­ais não apostam tanto. “Não acredito que ele volte a ser o que era”, diz uma fonte que não se identifica. Em um dos shows, Milton improvisou um trecho com uma limpeza de timbre que surpreende­u Janaína. “Olhei para o técnico de som naquele instante e ele percebeu o mesmo que eu. Ficamos emocionado­s, mesmo depois de ver tantos shows.”

Milton diz que, apesar dos treinos, a força que segura seu canto continua saindo da alma. “É ela quem manda em tudo.” Ele começa a falar algo que deixa nas entrelinha­s. “Pode ver que tem gente que é muito afinado mas que não passa... ah, melhor não falar isso.” Se cuida da voz de forma regrada, evitando ar condiciona­do ou líquidos gelados, diz apenas “não, isso nunca fez mal para mim. A única coisa que tenho de fazer é dormir”. Afinação, para Milton, seria uma preocupaçã­o? “Sempre fui muito preocupado com isso, agora não sou mais. Sai natural.” Ele diz que sente ter perdido extensão da voz, ficando mais limitado, mas que sonha em voltar a cantar antigas músicas em tons originais, como Caxangá.

Sua relação com a voz já começa de forma mítica. Ele mesmo conta ao Estado. Aos 9 anos, estava na casa dos pais quando percebeu a voz engrossar. “Eu só gostava de vozes de mulheres, de cantoras, e saí correndo pela casa, desesperad­o. Não queria que minha voz ficasse grave nunca e dizia para meus pais que não queria voz grossa. Eu chorava e eles só diziam ‘menino, isso passa’.” Um dia, ao chegar ao escritório do pai, ouviu no rádio uma introdução com arranjo de cordas, um belo coral e, triunfalme­nte, a entrada de Ray Charles em um tom alto cantando Stella By Starlight. “Pronto, eu perguntei para meu pai quem era. Era Ray Charles. Corri do mesmo jeito, mas de felicidade, dizendo ‘pai, homem pode cantar!’.”

Homem sem voz na música brasileira pode cantar desde João Gilberto. Mais precisamen­te, desde seu álbum Chega de Saudade, de 1959, quando o fio naturalist­a, sem impostação, começou a derrubar as

O que não faço é gritar. Quero chegar ao coração das pessoas sem precisar disso”

Erasmo Carlos

Gargantas. Erasmo, Gil , Ney Matogrosso, Joyce, Caetano e Gal Costa muralhas erguidas com muito vibrato na era do rádio. Chico Buarque, um descendent­e direto deste canto, é o aluno mais aplicado de Janaína. Ela compara sua performanc­e de oito anos com a turnê do álbum e Caravanas e sente a melhora. “Está muito melhor. Ele acabou de me mandar uma mensagem dizendo que recebeu elogios nos últimos shows.” Chico assumiu-se um atleta vocal, seguindo desde o aqueciment­o diário, passando por todos os exercícios e terminando com o desaquecim­ento. “E, assim, ele foi ganhando massa muscular”, diz a fonoaudiól­oga.

A relação com a voz, para artistas que jamais pensaram em como chegariam aos 70, se tornou um ato pessoal e intuitivo. Ney Matogrosso, considerad­o dono de uma das mais preservada­s cordas vocais de sua geração, diz que nunca fez nada para isso. “Só não entro em ar condiciona­do.” Moraes Moreira, preocupant­e por uma rouquidão limitante, prepara um disco pelo selo Discoberta­s com um single já lançado no Spotify. “Realmente, no momento eu prefiro o novo repertório, com o qual eu posso exprimir a minha voz aos 70 anos. Sou que nem cigarra e vou cantar até o papo estourar.” Zé Ramalho, de brilho intenso aos 68, diz que pensou no futuro. “Desde o início, há mais de 40 anos, procurei educar meu canto. Ficar atento sempre em relação à afinação é uma atenção que mantenho até hoje. Isso tem que ser de forma rigorosa. Não faço exercícios vocais antes de um show. Não uso “poções mirabolant­es” nem há por que usar, você chega lá e canta!” Erasmo Carlos fala em um tom do quanto pior, melhor. “Nunca fui cantor. Cantor é Ney Matogrosso, é Roberto Carlos. Quando fico rouco, acho que fico até melhor. A única coisa que não faço é gritar. Quero chegar ao coração das pessoas sem precisar fazer isso.” Joyce, 70 anos, regravando canção por canção do primeiro disco de sua vida, de 1968, diz que o tempo leva muita coisa, o polimento, a extensão, o brilho. Mas dá algo que não se tem aos 20 anos. “A voz ganha inteligênc­ia.”

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BAPTISTÃO

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