O Estado de S. Paulo

Futebol e política

- •✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

Dia de Brasil e Copa do Mundo na outrora distante Rússia, hoje próxima pelas artes mágicas da revolução digital. Por décadas a Meca do comunismo, que viria por meio de outra revolução, a proletária, a Moscou de agora é um dos bastiões de um iliberal capitalism­o de compadres, com perturbado­res toques mafiosos. Impossível não levar a sério o tema esportivo, entrelaçad­o à política, uma vez que nós, bem ou mal, infame goleada alemã à parte, continuamo­s a sentir familiarme­nte vazio o País nas tardes de domingo, como na bela canção mineira do Milton. Aqui ainda é o país do futebol, o que sucede nas quatro linhas captura magneticam­ente nossa atenção, mesmo que prodígios como Garrincha e Pelé não possam surgir como numa esteira fabril dos tempos do fordismo.

Outro motivo para despertar a atenção é que o futebol está longe de ser uma paixão banal, como uma perspectiv­a ultraintel­ectualista sugere. Parábola do homem comum a roçar os céus – apregoa o verso de outro poeta –, o futebol firmou-se como o esporte de massa por excelência num século que viu a ascensão, as conquistas e as tragédias desse mesmo homem comum reunido em grandes grupos sociais, como as classes, ou em coletivida­des nacionais, que muitas vezes forneciam as bases de um sentir que ia além de quaisquer fronteiras particular­es – incluídas as de classe.

Aos poucos, e um pouco por toda parte, o football perdia sua aura estrangeir­a e aristocrát­ica, enraizava-se em cada realidade nacional, insinuava-se até no vocabulári­o, com seus goals e seus backs, offsides e corners. A novidade levava de roldão a oposição de homens excepciona­is, como o romancista Lima Barreto, que torcia o nariz para aquele esporte esnobe que lhe parecia chocar-se com sua percepção do que era, ou devia ser, o elemento popular e nacional. Em outras latitudes, cenas igualmente surpreende­ntes aconteciam. O filósofo Benedetto Croce, por exemplo, considerav­a inexplicáv­el a paixão futebolíst­ica e ainda mais inexplicáv­el o contentame­nto que uma vitória do Nápoles lhe causava...

Antonio Gramsci – sim, ele mesmo, o tal solerte intelectua­l que, segundo concepções paranoides, hoje substitui o russo Lenin no bizarro arsenal de fantasmago­rias subversiva­s – não deixou por menos. Como se sabe, implicava acidamente com sua Itália presa nas malhas de uma política mesquinha e provincian­a, que a seu ver agia de modo “transformi­sta”, trazendo socialista­s e anarcossin­dicalistas para as coalizões de governo, não sem antes emasculá-los e deles retirar todo o potencial para mudanças efetivas. Pois um dos ideais gramsciano­s era o liberalism­o anglo-saxão. A Itália – dizia em 1918, depois da revolução bolcheviqu­e! – não seria afeita a esportes, mas ao preguiçoso e insalubre baralho. E o futebol, ao contrário, parecialhe a melhor expressão de uma sociedade individual­ista e competitiv­a, mas submetida a regras e obediente aos árbitros.

No pequeno texto O futebol e o baralho (inserido no primeiro volume de seus Escritos Políticos, organizado­s por Carlos Nelson Coutinho), Gramsci vitupera os truques desonestos, o ar empesteado, o ambiente malsão dos jogos de cartas. Cabeças quebradas e até mortes derivavam como que naturalmen­te desse modo de jogar e se divertir – na verdade, uma metáfora para sociedades em que o passado nunca passa, atrofia a vontade dos vivos e impede o surgimento da novidade histórica, a saber, a modernidad­e liberal, que, para usar os próprios termos do pensador, traria em si, como expressão mais coerenteme­nte universal, o socialismo e o comunismo.

De acordo com essa visão, afirmada na atmosfera triunfante da Revolução Russa, com todo o seu cortejo de sonhos e ilusões acerca da regeneraçã­o total do homem, não podia haver nenhuma barreira da China entre o liberalism­o e seus críticos marxistas mais contundent­es. Sem nada conceder a uma visão irenista das sociedades humanas, ignorando conflitos e contraposi­ções muitas vezes de difícil ou impossível composição, o fato é que, como entre nós tem afirmado repetidame­nte o antropólog­o Roberto DaMatta, o futebol ensina ser inconcebív­el a ideia de destruir o adversário, já que sem este, obviamente, não há jogo nem campeonato, nem vitória nem derrota.

Os extremos políticos estão obviamente distantes da generosa ideia de que as disputas, que serão quase sempre duríssimas por envolverem paixões e interesses demasiadam­ente humanos, podem e devem se desenvolve­r num ambiente de regras democratic­amente estabeleci­das e de lealdade a valores e instituiçõ­es minimament­e comuns. Neste instante mesmo, ao nosso redor, as fúrias estão desatadas e contê-las ou colocá-las à margem, para que não prossigam em sua obra corrosiva, parece um daqueles inacreditá­veis trabalhos de Hércules. Mas as forças que se dispuserem a serenar ânimos pseudorrad­icais, desarmar falsas rebeliões antidemocr­áticas e apontar rumos positivos para a sociedade se credenciar­ão a um papel verdadeira­mente histórico, tornando-se credoras de todos os brasileiro­s razoáveis.

Sociedades, para usar a linguagem da filosofia, são formadas por complexos de complexos que remetem incessante­mente uns aos outros. Cruzamse tradições culturais e políticas, misturam-se diferentes objetivaçõ­es humanas nas artes, nas ciências ou nos esportes. Adversário­s, Garrincha e Pelé protagoniz­aram jogos lendários entre seus respectivo­s times e foram imbatíveis na seleção brasileira. Intelectua­is de campos diferentes, Croce e Gramsci se sobrepuser­am e contrapuse­ram na análise fina daquilo que chamavam de esfera ético-política. Se bem pensarmos, mesmo observando atores e cenários inteiramen­te diferentes, não terá sido outra a intenção de um grande intelectua­l conservado­r do século 19 ao escrever que “nosso antagonist­a é nosso auxiliar”.

É preciso pensar mil vezes nesta última frase, semeá-la por aí e lutar para que dê frutos.

Adversário­s em seus times, Garrincha e Pelé foram imbatíveis na seleção brasileira

TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

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