O Estado de S. Paulo

Outros caminhos

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Conversei certa vez com a mãe de um rapaz desconfiad­a de que o filho estava fumando. Ela achava que não, e orgulhosa dizia ser ele o único não fumante em uma turma de dez amigos. Todos os outros fumavam. Delicadame­nte eu disse que ele também fumava, só não tinha confessado ainda. Apesar de seu ceticismo, o tempo cuidou de revelar a verdade. Ele também fumava. Meio óbvio, até. Não existe o bonzinho da máfia. É difícil encontrar um sedentário na turma dos atletas. Ou um vagal entre os CDFs. Nós tememos as más influência­s, mas a maldade não é detentora do poder de contágio. Somos influencia­dos o tempo todo pelo nosso entorno, seja por comportame­ntos bons, ruins ou mesmo neutros.

Você (ou sua esposa) estava de branco no casamento? Em sua casa é comum comer pão pela manhã? Quantos beijinhos no rosto você dá ao cumpriment­ar alguém? Com muito mais frequência do que imaginamos nosso comportame­nto é moldado pelo contexto social. E às vezes parece tão natural seguir aquele curso que sequer questionam­os se é algo que gostaríamo­s mesmo de fazer.

Quando estava com 5 anos, meu filho disse que era são-paulino. Até então corintiano como eu, amigos e primos o estavam levando a querer mudar de time. Só esse desejo já poderia ter me dado pista de que eu não tratava o assunto muito a sério em casa. Mas mesmo sem me importar tanto com futebol, tentei demovê-lo da ideia.

“Ah, mas o papai é corintiano. Você vai querer mudar? Continue corintiano.” Assim, sem gastar energia, mas agindo como se aquilo fosse o certo – pais e filhos torcendo para o mesmo time, como deve ser. (Detalhe que eu mesmo mudara de time quando criança – a família toda sãopaulina e eu virei corintiano por causa dos vizinhos). Semanas depois, percebi que ele estava incomodado com a situação, parecia mesmo querer mudar de time. “Filho, você pode torcer para quem quiser. O papai não liga. Mesmo.”

Foi um abrir de olhos. Pela primeira vez percebi que não ligo a mínima para futebol. Não é que me importo pouco. É uma indiferenç­a quase total. Eu que passei a vida dizendo que torcia pelo Corinthian­s percebi que não é verdade. Olhando para trás as coisas fizeram sentido. Eu não acompanho os campeonato­s. Não conheço os jogadores. Não sei quando tem jogo, muito menos qual foi o resultado. A rigor, portanto, não sou corintiano. Não sou nada. Não ligo. Foi como sair do armário.

Fiquei pensando nos homossexua­is que demoram para assumir sua orientação afetiva. Dá para entender. Quando as convenções sociais do entorno são muito rígidas e explícitas, é difícil agir em desacordo. Não é uma questão apenas de ir contra. Por muito tempo a pessoa pode nem notar que aquele padrão não é adequado para ele. Acredita tanto que o certo é homem casar com mulher, por exemplo, que nem considera a existência de outras possibilid­ades para si mesmo. Sair do armário fica muito mais difícil quando não se sabe que está dentro dele para começo de conversa.

Por isso quando o entorno é menos rígido, quando outras atitudes ou comportame­ntos são socialment­e legitimado­s, mais gente se sentirá à vontade para seguir outros caminhos.

E a Copa? Talvez isso explique o atual desinteres­se do brasileiro pela Copa. Não sei se tem a ver necessaria­mente com política, corrupção, golpe ou Lava Jato, como muitos disseram. Pode ser que o brasileiro esteja saindo do armário. Num ambiente em que fica mais claro que nem todo mundo é obrigado a gostar de futebol, que a paixão nacional não é assim tão apaixonant­e ou tão nacional, mais gente diz não estar preocupada com a Copa. Não sei se as pessoas acham o campeonato irrelevant­e diante dos escândalos políticos ou das dificuldad­es econômicas. Talvez o achem irrelevant­e apenas. Ponto. Só não lhes tinha caído a ficha.

Isso é diferente de torcer contra. Pelo menos no meu caso, a indiferenç­a não me faz dar de ombros a ponto de desejar a derrota da seleção. O fato de não me importar muito com o resultado não me impede de desejar sorte para nossos jogadores e mesmo de apreciar um jogo bonito. Até porque tem muita gente que vibra e se alegra. Então vou lá, assistir a estreia com elas.

Quando o entorno não é tão rígido, é mais fácil ter atitudes que fujam do esperado

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