O Estado de S. Paulo

Cinema para cego

Acaba em novembro prazo para que parte das salas do País seja acessível

- Ana Carolina Sacoman

Misako estuda cada detalhe do filme, passa dias tentando traduzir em palavras o “céu pálido” visto na tela. Ela não deve interferir no entendimen­to da película, não pode invadir a fala dos personagen­s nem expressar opiniões pessoais. Tem de estar presente e ausente ao mesmo tempo. Seu desafio é fazer com que cegos ou pessoas com a visão reduzida entendam a trama e, mais, se emocionem.

Ela é a personagem principal de Esplendor (Radiance/Hikari), filme japonês de 2017 que mostra o dia a dia – e os conflitos – de uma profission­al que trabalha com audiodescr­ição. “Fazemos com que um adulto que perdeu a visão perceba que pode voltar a fazer as coisas de antes”, resume Livia Motta, audiodescr­itora “na vida real” e autora de livro sobre o assunto. “A audiodescr­ição abre caminhos para a leitura do mundo.”

Esses caminhos, porém, já poderiam estar um tanto mais abertos no Brasil. É que, desde julho de 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiênci­a (Lei 13.146) estabelece, no Artigo 67, que “serviços de radiodifus­ão de sons e imagens devem permitir o uso de subtitulaç­ão de legenda oculta, janela com intérprete de Libras e audiodescr­ição”, na tentativa de promover a inclusão de cegos e surdos.

Prazos. A Agência Nacional de Cinema (Ancine) então formou grupos de discussão sobre o assunto e, entre outras questões, foram definidos prazos para a implementa­ção da acessibili­dade nos cinemas. E aí as coisas se complicara­m.

Em setembro de 2016, a Instrução Normativa 128 definia que, em 14 meses, 50% dos grandes exibidores (a partir de 21 salas de cinema no País) e 30% dos pequenos (para grupos de até 20 salas) deveriam ser acessíveis, chegando a 100% das salas dali a 24 meses, ou seja, em setembro de 2018. Pouco mais de um ano depois, nova Instrução Normativa, de novembro de 2017, estendia os prazos, começando com a acessibili­dade parcial em novembro próximo. Mas há quem acredite que será difícil cumprir a norma mais uma vez.

“A lei brasileira é única no mundo, pois também exige a acessibili­dade via Libras (Língua Brasileira de Sinais), o que criou grande resistênci­a dos exibidores”, diz Paulo Romeu, consultor técnico da Organizaçã­o Nacional de Cegos do Brasil e autor do Blog da Audiodescr­ição (veja depoimento ao lado).

É que, como acontece com a TV há mais tempo, a acessibili­dade via Libras, para surdos, exige aquele “quadradinh­o” com o intérprete em um pedaço da tela, o que poderia causar estranheza no público em geral. “Enquanto o mundo trabalha em uma solução de acessibili­dade tanto no hardware quanto no software, o Brasil tem essa outra questão (das Libras) para ser resolvida”, afirma o presidente da Ancine, Christian de Castro.

Ele aponta ainda uma outra dificuldad­e: os sotaques. “Uma legendagem de Libras no Sul teria diferença de uma no Norte e Nordeste. Como no interior de São Paulo é diferente da capital ou do Rio. Isso é uma particular­idade brasileira.”

Pepino. “O Brasil tem uma lei de inclusão ampla, com uma força grande, que fala de acessibili­dade de sites e manifestaç­ões culturais. Por outro lado, a lei assustou muita gente que não

tinha pensado nesse público”, acredita Mauricio Santana, vice-presidente da Associação Brasileira de Audiodescr­ição (Abrad) e diretor da Iguale, empresa que produz conteúdo acessível e representa no Brasil o aplicativo de acessibili­dade MovieReadi­ng.

Público que não é pequeno:

de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE), 6,5 milhões de pessoas têm deficiênci­a visual no País. Outros 9,7 milhões são deficiente­s auditivos.

Se o pioneirism­o dificulta todo o processo, a pirataria também não ajuda a discussão a andar. Enquanto a legenda descritiva

e a audiodescr­ição podem ser feitas pelos próprios estúdios, a linguagem de Libras teria de ser trabalhada por terceiros, o que aumenta o risco de as cópias de filmes chegarem às mãos dos camelôs muito antes de irem para as salas de projeção. “A gente quer ter acessibili­dade, que o cinema chegue ao maior número de pessoas possível, sobretudo o filme brasileiro, mas não podemos correr o risco de dilapidar o valor da propriedad­e intelectua­l”, diz Castro, da Ancine.

Recente. Realidade nos Estados Unidos desde os anos 70, a audiodescr­ição é relativame­nte recente no Brasil. A primeira vez que o recurso apareceu por aqui foi em 2003, no festival de cinema Assim Vivemos, de filmes sobre pessoas com deficiênci­a, patrocinad­o pelo Banco do Brasil. De lá para cá, algumas iniciativa­s começaram a promover a inclusão dos cegos às salas de cinema.

Uma delas é o Festival Melhores Filmes, do Cinesesc, em São Paulo, que há sete anos exibe películas com legendas abertas (detalhadas) e audiodescr­ição feita ao vivo. “O festival é uma missão, mas gostaria que toda a programaçã­o fosse acessível”, afirma a gerente adjunta do Cinesesc, Simone Yunes. “Já melhorou muito, mas no começo as distribuid­oras não entendiam por que tinham de mandar o DVD do filme antes, foi bem difícil, e ainda é, mas isso começa a mudar.”

A mudança é bem mais lenta do que gostariam os beneficiad­os. Dos 42 espaços, com várias salas, listados em São Paulo pelo Guia de Acessibili­dade Cultural, feito pelo Instituto Mara Gabrilli, apenas cinco oferecem opções de audiodescr­ição e legendagem, mediante pedido. A maioria das salas limita a acessibili­dade de cegos a elevadores com aviso sonoro, guia vidente e cardápio do café em braile.

Procurados, Cinemark, Cinépolis e Grupo Severiano Ribeiro, os três maiores exibidores do País, segundo ranking de 2016 da Ancine, não quiseram comentar.

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GABRIELA BILÓ/ESTADÃO Gravando!. Estúdio de audiodescr­ição da empresa Iguale, em SP
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ALF RIBEIRO Autonomia. Cães-guia também têm vez em festival do Cinesesc

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