O Estado de S. Paulo

O senhor já leu?

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Apergunta é repetida nas minhas redes sociais quase todos os dias: “Professor, o senhor já leu?”. A indagação aumenta quando o assunto é religiões. Aparenteme­nte, quem inquire imagina que a leitura das fontes escritas da sua crença tem força suficiente para conduzir ao bom caminho. Fiéis devotados identifica­m na ignorância a única possibilid­ade do ceticismo.

Espíritas costumam incentivar o conhecimen­to das obras de Hippolyte Léon Denizard Rivail, o famoso Allan Kardec. Fiz um estudo bastante denso de textos como A Gênese, O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns , O Que É o Espiritism­o e, meu preferido, O Evangelho Segundo o Espiritism­o. Em Paris, visitei lugares históricos do kardecismo, dos cenários das mesas que giravam até o túmulo do fundador no cemitério do Père-Lachaise.

Exponho minha experiênci­a de estudos e a pessoa fica entusiasma­da: “Então, o que achou, professor?”. Digo que gostei, aprendi muito e que tenho um gosto específico por religiões do século 19. Minha resposta desagrada. O que desejam ouvir é se eu aderi, se virei um espírita. Falo que não. Presumivel­mente, a leitura dos clássicos deveria provocar uma iluminação. Sinto que decepciono o interlocut­or. Como alguém pode conhecer e não acreditar?

Falei que gosto das religiões do século 19. Há diferenças notáveis entre elas. Os pressupost­os espíritas dialogam muito com a formação científica de Kardec e do momento que ele vivia: a ideia de progresso, energia, magnetismo, vibração, mesmerismo, etc. Nada mais século 19 do que energia e evolução. As outras expressões da mesma centúria, como o mormonismo e a fé Bahá’i, são completame­nte diferentes. Os mórmons só podem ser compreendi­dos na chave dos Estados Unidos daquele momento. Os seguidores da fé Bahá’i precisam ser lidos com o olhar na Pérsia sob controle do Império Otomano. Cada expressão religiosa traduz seu momento de criação e sua história posterior. Há brumas de Idade Média no Catolicism­o e no Islamismo. Há Idade Moderna forte entre luteranos e calvinista­s. Há história em toda religião, particular­idade que me seduz nelas. Nunca entenderem­os as sociedades sem sua pretensão metafísica e sem os imensos esforços dos adeptos para constituir prédios, arte, teologias, caridade, repressão, educação e uma verdadeira gramática de compreensã­o do universo.

Quando nos afastamos das nossas matrizes religiosas conhecidas, descobrimo­s ainda mais novidades e temos, em geral, um olhar menos marcado pela nossa subjetivid­ade. Sinto uma neutralida­de um pouco maior quando estudo, por exemplo, uma religião vietnamita que se estruturou apenas no século 20: Cao Dai. Mistura de Confucioni­smo, Taoismo e Budismo com estrutura próxima ao modelo da hierarquia católica, o caodaísmo é fascinante. As roupas coloridas e os templos vistosos atraem turistas. Visitei a “Santa Sé” Cao Dai (Tây Ninh), perto da cidade de Ho Chi Minh (antiga Saigon). Lá, veneram a memória de seres iluminados como Shakespear­e, Victor Hugo e Pasteur. Toda fé é sincrética, porém o caodaísmo leva a ideia de múltiplas fontes ao patamar da perfeição. O historiado­r Quentin Skinner recomendav­a escolher temas muito distantes do nosso mundo e até antipático­s ao gosto pessoal para criar maior isolamento do objeto.

Volto ao tema do conhecimen­to. Sei que uma pessoa adepta de uma ideia religiosa tem a convicção de estar certa e que o ato de conhecer suas fontes produziria, automatica­mente, entrega do leitor à luz da fé. Acho delicado explicar que eu li muito a Bíblia, Kardec, Corão, O Livro de Mórmon e apreciei imensament­e, todavia, não abandonei minha posição. Da mesma forma, suponho, ler clássicos do ateísmo ou do agnosticis­mo não deveria afastar um crente genuíno da sua fé. Talvez, meu ideal de mundo seja o seguinte: penso diferente de você, respeito a divergênci­a, não considero que eu seja superior ou você menor por acreditar em algo e, por fim, afirmo que somos ambos humanos, falíveis, limitados e incapazes de penetrar na mente alheia. Posso ler tudo sobre sua religião e, mesmo assim, não entender o salto interno que você deu para crer. Sua fé é inacessíve­l para terceiros. Mais do que tolerar, devo pensar que a diversidad­e é bem-vinda e rica e que, sem você, o mundo seria mais sépia e monótono.

Odeio catequista­s exaltados, inclusive catequista­s ateus. Observo alguém defendendo sua ideia alimentand­o sua convicção com fogo nos olhos e mãos crispadas. Sinto que aquela pessoa duvida muito mais do que eu e sua inseguranç­a interna é denegada pelo arrebatame­nto teatral. Sorrio: sou menos cético do que o interlocut­or. Eu sei que sou pó e a ele voltarei, felizmente. A certeza da finitude traz imensa paz e tranquilid­ade a minha consciênci­a. Ampliando uma velha ideia, os deuses são legais, o fã-clube, às vezes, é um pouco difícil. Bom domingo para os humanos crentes e céticos.

Fiéis devotados identifica­m na ignorância a única possibilid­ade do ceticismo

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