O Estado de S. Paulo

Encantamen­to

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Os livros que compunham O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, causaram sensação no seu lançamento, no fim dos anos 50 e começo dos 60. Eram uma evocação mágica de um lugar – Alexandria – e de uma época. Alexandria, a capital da memória, como a descreve Durrell. Minha memória é do encantamen­to com que li o primeiro dos quatro volumes, Justine, há, meu Deus, quase 60 anos, mal podendo esperar para ler os outros que já existiam, Balthazar e Mountolive, e o que ainda estava por vir, Clea.

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Não sei se o encantamen­to seria o mesmo, hoje. O estilo suculento do Durrell do quarteto talvez não tenha resistido bem ao tempo. Não vou ler outra vez, porque só há vaga na fila de coisas esperando a minha leitura em 2050, se o derretimen­to dos polos não interferir, e para não me decepciona­r. Mas se você ainda não entrou no universo fascinante de Durrell, procure a edição em português, acho que da Ediouro, para conhecer Darley, Justine, Melissa, Nessim, Pursewarde­n e os outros personagen­s da sua memória. E principalm­ente a cidade evocada, a sensual Alexandria, suspensa no ar áspero do deserto como uma miragem ondulante, onde todas as raças e culturas se cruzam, todos conspiram e tudo é erotismo e mistério, e que provavelme­nte só existia na imaginação do autor. *

Os estilos muito elaborados são, um pouco, como as rabanadas do Natal: é melhor consumi-las cedo, quando ainda estão crocantes, porque depois ficam meio pegajosas. Às vezes só falta o tempo para transforma­r densidade em preciosism­o. Desconfio que com o texto de Durrell aconteceu isso, o que não diminui seu sabor – como também pode ser dito das rabanadas passadas. Nada como um criminoso para escrever num estilo rebuscado, diz o Humbert Humbert, do Nabokov, e o crime que mais inspira a criação rarefeita é o incesto.

* Segundo escreveu o John Updike a respeito de não me lembro mais o que ou quem, incesto, o mais antigo dos tabus, é o mais moderno dos temas literários. Está, disfarçado ou declarado, em boa parte da literatura atual, como o adultério predominav­a na do século 19. Se me lembro bem, um dos personagen­s de Durrell (Mountolive? Pursewarde­n?) tem um caso amoroso com sua irmã cega. Anos depois da publicação do Quarteto, soube-se que uma filha de Durrell, chamada Sappho Jane, se suicidara, acusando o pai de tê-la seduzido.

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O Quarteto de Alexandria foi uma sensação, mas Durrell não fez mais nada parecido. Tentou a mesma técnica de narrativa multifacet­ada, que chamava de “continuum”, num Quinteto de Avignon,

sem o mesmo sucesso. O Quarteto

não é exatamente para ler embaixo do cobertor em noites de inverno, mas é uma experiênci­a para ser lembrada com prazer.

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