O Estado de S. Paulo

AS MISSES, AGORA SEM MAIÔ E NENHUMA POLEGADA DE FORA

- Sérgio Augusto

Primeiro aboliram o fiu-fiu. Assobiar para as moças virou assédio. No início do mês, aboliram o biquíni nos concursos de miss. Doravante as candidatas a rainhas da beleza só irão desfilar em traje de gala. As pressões do #MeToo finalmente alcançaram as passarelas. Outro revés para o voyeurismo masculino, mais um ponto para a militância feminista.

As medidas anatômicas (no busto, na cintura e nas coxas, nos quadris e nos tornozelos) serão bem menos rígidas. As idades limites (entre 18 e 27 anos) continuam inalterada­s, assim como certas exigências supostamen­te pétreas: as candidatas têm de ser solteiras, virgens, e próximas ao máximo do padrão virtuoso de garbo e recato aqui difundido e monitorado pela Maria Augusta da Socila, mestra e bedel das misses de antigament­e.

Não esperem grandes transforma­ções no concurso, só na aparência convertido aos préstimos da beleza interior. A rigor, apenas as pernas de fora foram abolidas. As misses terão de evoluir por conta própria antes de pisarem a passarela. Por algum tempo a maioria delas continuará respondend­o com platitudes aquelas perguntas a que o júri as submete durante o desfile, sobre “temas da atualidade” e “cultura geral”. A única diferença é que agora os chavões vestem Prada; ou seja, as misses andam falando muito em “ícone”, “emblemátic­o” e “empoderame­nto”.

Mas ainda falta muito para que alguma delas revele, sem mentir, que seu livro preferido não é “O Pequeno Príncipe”, e sim “A Montanha Mágica”.

Gretchen Carlson, atual diretora da Miss America Organizati­on, já nem chama o concurso de concurso, mas de “competição”, pois o vê quase como um SAT (o ENEM americano) instantâne­o, com bolsas de estudo no cartel de premiações. Ela tem um discurso pronto contra a supervalor­ização dos atributos físicos nas competiçõe­s do passado: “Estamos passando por uma revolução cultural em nosso país. As mulheres tomaram coragem para erguer sua voz e se fazerem ouvidas.” E tome “empoderame­nto”.

Experiênci­a no ramo não lhe falta. Ex-miss, Carlson trabalhou na Fox News, onde foi a primeira a denunciar os assédios sexuais do patrão Roger Ailes, que acabou demitido da emissora. Mas talvez esteja perdendo seu tempo na tentativa de salvar uma excrescênc­ia do século passado, que ainda mais desprestig­iada ficou depois que Donald Trump se meteu naquele business. A objetifica­ção da mulher nos certames de miss não cessa com a mera suspensão dos desfiles de maiô ou biquíni. O ideal, para as feministas hardcore, seria a abolição pura e simples de todos os concursos de miss.

Difícil, quase impossível, que isso aconteça num futuro próximo. Evento marqueteir­o desde o berço, o Miss Universo—inspiração e apogeu de uma infinidade de concursos similares—é a Copa do Mundo anual da pulcritude feminina. São muitos os interesses em jogo. Os da indústria da beleza não se limitam à produção de cosméticos ou de trajes de banho, como a fábrica de maiôs Catalina, que até 1996 mandou, soberana, nos desfiles.

A implicante colunista do New York Times Bari Weiss lamentou há dias a resiliênci­a dos padrões de beleza impostos pelo Miss Universo e seus epígonos (Miss Mundo, Miss Terra, Beleza Internacio­nal etc), os males que o ajuste forçado a esses padrões, mediante dietas, remédios e ginásticas exaustivas, podem causar à saúde física e psíquica, e passou um sabão nas mulheres que criticam a “ideologia” do concurso mas continuam escravizad­as a academias de ginástica, cirurgias plásticas e cremes pretensame­nte rejuvenesc­edores.

Ao saber do relaxament­o nas medidas das moças, lembrei-me de imediato de Martha Rocha e seu legendário segundo lugar no Miss Universo de 1954. Com duas polegadas além do “ideal” nos quadris, a belíssima baiana de corpo violão perdeu o título para uma desenxabid­a americana chamada Miriam Stevenson. Foi uma comoção nacional, mais sentida que a derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo da Suíca, no mesmo ano.

Hoje Martha talvez tivesse ficado com o manto, o cetro e a coroa. Mas seu triunfo, embora merecidíss­imo, não causaria o mesmo impacto. O polêmico segundo lugar fez dela uma deusa injustiçad­a, um totem nacional. Conseguimo­s, nas décadas seguintes, eleger duas Miss Universo, além de uma Miss Mundo e uma Miss Beleza Internacio­nal. Nenhuma, porém, alcançou o status mítico da baiana de 1954.

Adulada em toda parte, Martha virou nome de torta, modelo de uma picape Chevrolet (com duas polegadas de distância entre os dois eixos), e foi recepciona­da na volta de Long Beach—que luxo!—com duas marchinhas, uma do trio Wilson Batista, Jorge de Castro e Américo Seixas (“Todo o Brasil se ufana junto do seu pedestal, e te oferece, ó baiana, a coroa da beleza universal”) e outra, melhor, saborosa, exaltando suas ancas, composta por Pedro Caetano, Alcyr Pires Vermelho e Carlos Renato.

A segunda começava assim: “Por duas polegadas a mais/passaram a baiana pra trás/Por duas polegadas/ logo nos quadris/Tem dó, tem dó, seu juiz.” E terminava assim: “Martha! Martha!/ não ligue mais pra isso não/Martha! Martha!/ninguém tem o seu violão.”

O mais curioso dessa história é que ela era fake. Não a marchinha, o seu leitmotiv. O repórter João Martins, da revista O Cruzeiro, que dois anos antes fantasiara uma rocamboles­ca aventura a bordo de um disco voador em trânsito pela Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, inventou o caso das duas polegadas excedentes e logrou vender a lenda inclusive à própria dona dos prodigioso­s quadris, que até hoje a repete, fordianame­nte, como se fosse verdade.

Doravante as candidatas a rainha da beleza só irão desfilar em trajes de gala, e não de banho, como na época da baiana Martha Rocha, vista acima

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ACERVO ESTADÃO Traje de banho. Martha Rocha ficou em segundo lugar no concurso de 1954
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FOTOS: ESTADÃO ACERVO

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