O Estado de S. Paulo

A POLIFONIA DE DOSTOIEVSK­I

- Caio Sarack

A obra Dostoievsk­i e a Dialética: Fetichismo da Forma, Utopia como Conteúdo (Editora Hedra), do escritor, professor e pesquisado­r Flávio Ricardo Vassoler, desponta com um ímpeto de suma originalid­ade – e polêmica. Eis a avaliação de Susan McReynolds, especialis­ta na obra de Fiodor Dostoievsk­i (1821-1881) e professora de Literatura Russa da Northweste­rn University (EUA) – instituiçã­o pela qual Vassoler fez sua pesquisa – e do crítico literário Manuel da Costa Pinto, que assina o prefácio.

Ao longo da entrevista concedida ao Aliás, vejamos por que, ao colocar Dostoievsk­i em diálogo com o crítico russo Mikhail Bakhtin; os filósofos alemães Hegel, Karl Marx e Theodor Adorno (1903-1969); e o pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, o codificado­r da doutrina espírita, Vassoler afirma que “Dostoievsk­i ainda está se tornando Dostoievsk­i”.

• No livro, você não só reconstrói a tradição crítica sobre Dostoievsk­i, como define seu alcance. Como esse alcance é relevante para seu trabalho?

Poderíamos falar em dois momentos fundamenta­is dessa tradição que foram importante­s para que eu situasse meu livro como uma obra de contradiçã­o: as consideraç­ões de Mikhail Bakhtin, em Problemas da Poética de Dostoievsk­i (1929), sobre a possibilid­ade de o escritor ter erigido uma nova forma literária – “o romance polifônico integral” – e as complexas relações entre cristianis­mo e socialismo em meio à obra de Dostoievsk­i. Bakhtin, com honestidad­e intelectua­l, reconhece que seu livro não consegue demonstrar, de forma total, como o romance polifônico integral se constitui. Bakhtin apreende a dialogia – a palavra e as ideias postas para e moduladas pelo outro – como uma condição ontológica das personagen­s dostoievsk­ianas. As vozes comporiam um concerto polifônico. Entrevemos uma crítica velada à ditadura soviética, em meio à qual as vozes sociais não podiam se exprimir dialogicam­ente diante da ubiquidade totalitári­a. Mas Bakhtin não analisou sob o signo da contradiçã­o. Se tivesse aproximado dialogia e polifonia da dialética, teria sido possível compreende­r como ontologia dialógica e plano autoral, fé e ateísmo, compaixão e niilismo, utopia e distopia se articulam em meio à obra. Nesse sentido, realizo, em meu livro, uma tomada de posição inusitada em meio à fortuna crítica ao fazer com que a dialética mobilize as aporias e insuficiên­cias que Bakhtin não conseguiu superar, chegando àquilo que conceituo como a dialética polifônica. Proponho, assim, uma totalizaçã­o para o projeto que o crítico russo iniciou há pouco menos de um século.

Fale, então, sobre a relação entre cristianis­mo e socialismo na obra de Dostoievsk­i.

“Se Deus não existe, tudo é permitido”: o aforismo atribuído a Ivan Karamázov nos faz entender que, para Dostoievsk­i, a morte de Deus e a inexistênc­ia da eternidade levariam a uma vacuidade ética que só faria insuflar o egoísmo mais contumaz. Em termos ateístas, Dostoievsk­i pode ser lido como a quintessên­cia da vontade de poder e do caos: homicídio, em Crime e Castigo; ressentime­nto, em Memórias do Subsolo; extorsão, estupro, suicídio e pedofilia, em Os Demônios; parricídio, em Os Irmãos Karamázov. Sem Deus, o (suposto) altruísmo socialista seria revertido em opressão e barbárie tão logo os revolucion­ários chegassem ao poder. Dostoievsk­i trouxe à tona tais reflexões décadas antes do horror stalinista. Mas, conforme analiso a partir das antíteses espirituai­s em Dostoievsk­i, se Deus não existe e tudo é permitido, Deus poderia voltar a existir. O movimento da história teria o potencial de superar o niilismo com base no resgate das noções de ontologia do ser social e compaixão, comunhão e eternidade. O ímpeto pela utopia terrena – a vinda do Éden – voltaria a fazer sentido se esta vida fosse mais uma etapa do longo, contraditó­rio e eterno processo de “cicatrizaç­ão do espírito”.

• Nesse conceito, seu livro aproxima Dostoievsk­i de Hegel e Allan Kardec, outro movimento inusitado diante da fortuna crítica. Qual é a influência deles para a obra de Dostoievsk­i?

A influência exercida pelo idealismo alemão de Hegel sobre o meio intelectua­l russo é um ponto pacífico entre os estudiosos. Já a contribuiç­ão de Kardec para as investigaç­ões espirituai­s do escritor é uma vereda polêmica – e ainda pouco explorada. O pesquisado­r Rudolf Neuhäuser, da Universida­de de Klagenfurt, publicou um artigo na revista Dostoievsk­y Studies (1993), asseverand­o que Dostoievsk­i leu O Livro dos Espíritos (1857), de Kardec. O escritor discorre sobre o espiritism­o, com um misto dostoievsk­iano de admiração e repulsa, em seu Diário de um Escritor, em 1876. Mas, para além do contato imediato de Dostoievsk­i com Kardec, procuro analisar, em diálogo com o conto O Sonho de um Homem Ridículo, as imbricaçõe­s filosófica­s que fazem com que Dostoievsk­i, Hegel e Kardec entrevejam um sentido redentor para a história de modo que a (in)finitude da vida reconcilie suas feridas e escombros sob o signo da utopia – e da eternidade.

Como você espera que seja a recepção da obra?

Espero que minhas contribuiç­ões possam tensionar certas leituras decantadas – e, por vezes, dogmáticas – que só fazem apreender o escritor russo ora como um rematado niilista, ora como um apóstolo inequívoco da ortodoxia. Se a forma em Dostoievsk­i tem o potencial de acompanhar (e ressignifi­car) o processo de coisificaç­ão das pessoas e fetichizaç­ão das mercadoria­s; se o conteúdo das vozes dostoievsk­ianas esgarça e amplia a razão para que a história e a eternidade se transforme­m em travessias, talvez seja o momento de compreende­r Bakhtin, quando afirma que “Dostoievsk­i ainda não se tornou Dostoievsk­i”.

É MESTRE EM FILOSOFIA PELA USP E PROFESSOR DOS COLÉGIOS SIDARTA E NOSSA SENHORA DO MORUMBI

Pesquisado­r brasileiro refaz o percurso de Mikhail Bakhtin e oferece uma interpreta­ção alternativ­a à fortuna crítica da obra do escritor russo

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GABRIELA BILÓ/ESTADÃO Inflexão. Vassoler rediscute a tradição crítica da obra de Dostoievsk­i
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FLÁVIO RICARDO VASSOLER EDITORA: HEDRA
406 PÁGS., R$ 62
DOSTOIEVSK­I E A DIALÉTICA AUTOR: FLÁVIO RICARDO VASSOLER EDITORA: HEDRA 406 PÁGS., R$ 62

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