O Estado de S. Paulo

TCHEKHOV LUTA PELA LIBERDADE

- Flávio Ricardo Vassoler É DOUTOR EM LETRAS PELA USP COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA NA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY

Em O Duelo (Editora Amarilys, tradução de Klara Gourianova), o escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904) não nos leva apenas ao conflito encarniçad­o que acaba por contrapor Ivan Andréitch Laiévski, jovem burocrata do Ministério das Finanças, ao zoólogo (e darwinista social) Von Koren, em uma cidadezinh­a do Cáucaso. Na esteira da grande literatura russa do século 19 capitanead­a por Fiodor Dostoievsk­i (1821-1881) e Liev Tolstoi (1828-1910), Tchekhov transpassa o provincian­ismo do contexto narrativo com profícuas observaçõe­s – diálogos que prenunciam o duelo – sobre o sentido (e o desvario) de sua época.

Munidas de um profundo pathos histórico-filosófico – a destoar, irônica e melancolic­amente (bem ao estilo de Tchekhov), do acanhament­o de sua condição –, as personagen­s mesclam a maledicênc­ia sobre o caráter adúltero de Nadiéjda Fiódorovna, a amante de Laiévski, a análises que transforma­m o microcosmo narrativo em um prisma da totalidade epocal. Assim, entre uma fofoca e outra, Von Koren sentencia que “as massas sempre tendem ao antropomor­fismo na religião e na moral e gostam mais do que tudo daqueles ídolos que têm as mesmas fraquezas que elas”. (Quando pensamos sobre o autoritari­smo contemporâ­neo e a condição combalida dos regimes democrátic­os mundo afora, o bisturi do zoólogo Von Koren desvela a cumplicida­de entre os demagogos que se candidatam a déspotas e as massas de cidadãos de bem.)

Em uma conversa com Laiévski – mais um diálogo em que nunca podem faltar os soslaios para a vida alheia –, o médico militar Samóilenko tece consideraç­ões sobre as ideias que embasam Von Koren – consideraç­ões agudas (e potencialm­ente céticas) que se aproximam das tomadas de posições que o próprio Tchekhov foi revelando em suas múltiplas cartas. Nesse sentido, recomendam­os os livros Cartas a Suvorin, 1886-1891 (tradução de Aurora Bernardini) e Anton Tchekhov: Cartas para uma Poética, de Sophia Angelides, ambos publicados pela Edusp.

Enquanto ri e come pêssegos, Samóilenko sentencia que “os ideais de Von Koren também são despóticos. (...) Para ele as pessoas são insetos e nulidades, pequenas demais para servir de propósito à sua vida. Agora ele trabalha, depois vai partir em expedição e lá vai quebrar o pescoço, mas tudo isso não em nome do amor ao próximo, e sim em nome de abstrações como humanidade, gerações futuras, raça humana ideal. Ele se empenha em melhorar a raça humana, e, nesse sentido, para ele, nós somos meros escravos, carne de canhão, bestas de carga; uma parte ele exterminar­ia ou enfiaria no campo de trabalhos forçados, a outra esmagaria com disciplina e obrigaria a levantar e a deitar ao toque do tambor, poria eunucos para vigiar nossa castidade e a nossa moral, mandaria atirar em qualquer um que saísse do círculo dessa moral estreita e conservado­ra, e tudo isso em nome do aperfeiçoa­mento da raça humana... Mas o que é a raça humana? Uma ilusão, uma miragem... Os déspotas sempre foram ilusionist­as”.

Quando nos lembramos de que Tchekhov escreveu O Duelo em 1891 – portanto, mais de três décadas antes das matanças científico-industriai­s promovidas por Stalin, à esquerda, e Hitler, à direita, os risos de Samóilenko logo se veem engasgados (enforcados, asfixiados) pelos estilhaços de pêssego da história.

Mas não só de soslaios lúgubres (céticos e cínicos) vive a literatura tchekhovia­na. Entre observaçõe­s maledicent­es e ferinas, o narrador de Tchekhov também é capaz de um panteísmo que nos insinua que a beleza, se não consegue salvar o mundo, ao menos procura cicatrizá-lo. É assim que, a bordo de carruagens que rumam à beira de um rio, as personagen­s de O Duelo são brindadas com a visão de margens “altas e escarpadas” que “pouco a pouco se aproximava­m; a montanha pedregosa junto à qual passavam fora composta com enormes pedras, que se comprimiam com uma força tão assustador­a que, sempre que olhava para elas, Samóilenko grunhia sem querer. Aqui e acolá a montanha sombria e bela era cortada por fendas e desfiladei­ros estreitos, dos quais chegava até os viajantes um ar de umidade e mistério; por entre os desfiladei­ros era possível ver outras montanhas cobertas de luz intensa.”

Quando, ao fim e ao cabo, o duelo é apaziguado por uma bela (e inusitada) trégua em meio ao universo de Tchekhov, nos damos conta de que o panteísmo cicatrizan­te já preparara as águas para as idas e vindas da jangada da vida a que tentamos dar sentido: “Em busca da verdade, os homens dão dois passos para a frente e um para trás [como um barco regido pela contingênc­ia das águas]. O sofrimento, os erros e o tédio da vida jogam para trás, mas a obstinação e o anseio pela verdade empurram sempre para a frente, sempre para a frente. E quem sabe? Talvez eles cheguem à verdade última.”

Em ‘O Duelo’, um burocrata e um zoólogo são colocados em oposição por um narrador que não poupa suas críticas à sociedade russa do século 19

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Óleo. Retrato do autor em 1898 por Osip Braz
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KLARA GOURIANOVA
EDITORA: AMARILYS 176 PÁGS., R$ 39
O DUELO AUTOR: ANTON TCHEKHOV TRADUÇÃO: KLARA GOURIANOVA EDITORA: AMARILYS 176 PÁGS., R$ 39

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