O Estado de S. Paulo

REPENSANDO HINDEMITH

- João Marcos Coelho

Qual a razão de certos compositor­es serem ignorados por séculos, depois de terem desfrutado a fama e sido determinan­tes em seu tempo? O autor das Quatro Estações, o italiano Antonio Vivaldi, é caso-limite. Teve de esperar praticamen­te dois séculos, desde sua morte em 1741, para ser resgatado em concertos entre 1933 e 1939 na cidade italiana de Rapallo promovidos pelo poeta Ezra Pound. Pior destino teve Georg Philipp Telemann (1681-1767), que ainda hoje permanece no limbo. Amigo de Bach e padrinho de Carl Philipp, seu quinto filho, foi o primeiro a instituir concertos públicos pagos em Leipzig, com seu Collegium Musicum em 1703. Compôs cerca de 6 mil obras.

Vivaldi e Telemann vêm à baila porque Marco Aurélio Scarpinell­a Bueno, dublê de médico pneumologi­sta e escritor apaixonada­mente dedicado à música do século 20, está lançando Paul Hindemith: Músico por Inteiro. Ele já nos presenteou com três ótimos livros na última

década: Schnittke: Música para Todos os Tempos

(Algol, 2009), Círculos de Influência: a Música na União Soviética, da Revolução Bolcheviqu­e às gerações pós-Shostakovi­ch (Algol, 2010) e Sons por detrás da Cortina: Música no Leste Europeu

durante a Guerra Fria (Intermeios, 2015). A tônica de seus livros anteriores – a relação da música com a política e a firme postura de resgatar compositor­es que o tempo parece querer apagar – permanece mais acesa do que nunca quando o assunto é Paul Hindemith (18951963), o caso mais emblemátic­o, no século 20, do cruel destino post-mortem de músicos como Vivaldi e Telemann. Até ser obrigado a aproveitar a emigrar para os Estados Unidos, já com a 2.ª Guerra Mundial comendo solta, em fevereiro de 1940, foi determinan­te na vida musical da República de Weimar e no Terceiro Reich. Na década de 1920, teve como parceiro Bertolt Brecht em Lehrstück, ou Doutrina e dirigiu o Festival de Música Nova de Donaueschi­ngen, onde estreou obras experiment­ais. Foi amigo próximo de Arnold Schoenberg. Era respeitadí­ssimo pela série de sete Kammermusi­k (1921-27), cartão de visitas que não o legitimou junto às vanguardas.

Mas, pecado capital, não aderiu à cartilha comunista de Brecht e seus parceiros Kurt Weill e Hanns Eisler. Segundo pecado capital: tentou, a partir de 1933, conviver com o nazismo. Teve ajuda de Wilhelm Furtwängle­r, titular da Filarmônic­a de Berlim, que escreveu uma carta publicada na imprensa defendendo o amigo. Mas nem assim, e mesmo não sendo judeu, conseguiu acomodar as coisas. O jornal nazista Die Musik pregou o boicote à execução de sua música em seus eventos por seu “caráter oscilante, como atesta sua proximidad­e com um tal Brecht, expoente da decadência”. E o próprio Goebbels respondeu furioso a Furtwängle­r em outra publicação bancada pelo Reich que levava o sintomátic­o título D er

Angriff (O Ataque): “Por que oferecer louros a um compositor barulhento como Hindemith?” E, na Assembleia Anual da Câmara de Cultura do Reich, ele completou de viva voz: “Hindemith é um degenerado e charlatão, um barulhento atonal!” Justamente atonal é o que ele jamais foi, caro Goebbels. Apesar da hostilidad­e oficial, topou uma encomenda da Luftwaffe, a temida força aérea de Göring (“oportunida­de imperdível, vou dar tudo de mim”, disse, como um jogador de futebol, em um indesculpá­vel escorregão ético).

Mas, de outro lado, acertou ao fazer um projeto de educação musical em Ancara, na Turquia, financiado pelo Reich. Dali em diante, seu mote passou a ser a via educaciona­l e o retorno a uma “música utilitária”, funcional, que faça parte da vida dos cidadãos como acontecia no século 18, quando compositor­es como Bach escreviam música para casamentos, mortes e o serviço religioso em suas comunidade­s. Uma das histórias mais conhecidas em torno de Hindemith é a de sua Trauermusi­k, música fúnebre para viola e cordas: ele a compôs na noite de 20 de janeiro de 1936, em Londres, onde estava para um concerto, quando soube da morte do rei Jorge V. E, no concerto da noite seguinte, ela foi executada. Foi o exemplo mais eloquente de sua música utilitária.

Na verdade, poucos perceberam, mas esta atitude era tão radical quanto a das vanguardas que o condenaram à marginaliz­ação nos últimos 55 anos que nos separam de sua morte. Em carta de 1930, define-se contra a música de concerto e a favor de música “para projetos educaciona­is ou então com propostas sociais, sejam elas dedicadas a amadores, crianças e até programas de rádio”.

Ele acrescenta que “nos últimos tempos parei de compor música exclusivam­ente destinada a concertos” e algumas linhas abaixo diz que, como a música de concerto “é um exercício essencialm­ente técnico para o músico, e pouco tem a ver com o desenvolvi­mento da música em si”, dali em diante vai tratar a música de concerto como “um negócio”, ou seja, música de sobrevivên­cia, caso das encomendas que o transforma­ram no compositor mais requisitad­o pelas orquestras na década de 1940 nos Estados Unidos. E revela seu ideário revolucion­ário: “O idealismo que tenho aplicado em meus projetos musicais, e que considero essenciais para o desenvolvi­mento futuro da música, não pode ser transferid­o para a música de concerto pura e simples”.

Um tema atualíssim­o hoje, em pleno século 21, quando as plateias diminuem nas salas de concerto do mundo inteiro, e instituiçõ­es daqui e de fora tentam de tudo para trazer mais pessoas aos concertos – quando deveriam reinventá-los. A solução, correta, de Hindemith foi atuar na formação musical. Só assim altera-se estrutural­mente a vida musical de um país, formando músicos mais consistent­es e, sobretudo, o público, que por aqui deveria ter aulas de música desde o primeiro grau (aulas decentes, profission­ais). Por isso, enquanto o furacão nazista varria o seu país, ele escreveu métodos de ensino e deu aulas em várias universida­des.

Além de compositor, estudou viola e violino e tornou-se um virtuose, respeitado como intérprete e como criador musical. Também foi pioneiro na prática da música historicam­ente informada, promovendo execuções com instrument­os de época do repertório pré-barroco e barroco. Isso, sem dúvida, pode ter lhe dado um faro mais apurado da necessidad­e de a música retomar o vínculo não só com a tribo do público de concerto, mas com toda a sociedade. Como escreve Scarpinell­a, ele “insistiu na criação de uma música imbuída de responsabi­lidade ética”.

Uma responsabi­lidade que tem a ver com música que seja entendida e bem absorvida por quem a ouve. Em consequênc­ia, convenceu-se de que “a tonalidade é uma força da natureza tal qual a gravidade”, como escreveu em seu livro Instrução em Composição Musical, escrito em 1945, nos EUA. Dois anos antes, entre dois movimentos de sua Sonata para Sax-alto e Piano, colocou versos próprios sintomátic­os, definindo sua postura:

O antigo não é bom, pela simples razão de pertencer ao passado/

O novo não é mais excelente porque marchamos com ele/

E nunca ninguém sentiu mais felicidade/ Do que aquele em condições de assumir e compreende­r/

Compete a ti, acima da pressa, do ruído e da multidão/

Encontrar e preservar de novo/ Aquilo que é permanente, o silêncio, o sentido, a estrutura.

É escassa a bibliograf­ia em torno de Hindemith, justamente por causa deste recalque de que foi – e continua sendo – vítima por parte das vanguardas e da vida musical em geral. Ninguém toca sequer sua obra. Outros dois livros clareiam outros aspectos de sua postura. Um deles, de 2009, é do musicólogo italiano Marco Moraighi. Ele sugere que a trajetória artística do compositor corre com frequência nos mesmos trilhos de escritores, pintores e escultores e não de músicos, “talvez em função do seu específico universali­smo humanístic­o”. E cita o curto porém fundamenta­l livro de Ian Kemp, de 1970, outro que acena que “a obra de Hindemith não pode ser comparada a nenhuma outra produção musical sua contemporâ­nea, mas apresenta afinidades surpreende­ntes com a obra do pintor francês Georges Braque”.

Em outra rara publicação, de 1996/97, um número coletivo especial da revista francesa Ostinato Rigore, comemorati­va do centenário de nascimento do compositor Andres Briner, aluno de Hindemith em Zurique, e que depois foi presidente do Conselho da Fundação Hindemith, propõe cunhar sua concepção musical como “tonalidade livre”, ou seja, “a música é tonal e perceptíve­l, mas não obedece mais a funções predetermi­nadas (...) Hindemith considerav­a o temperamen­to igual como solução histórica hoje ultrapassa­da. Propunha criar maior clareza harmônica com mudanças de tônicas de uma obra, por um temperamen­to de quintas mais puras (...) Assim ele deu à sua polifonia um princípio formal tonal, baseado na escala de doze sons cromáticos, mas com uma ordem funcional.”

Este tipo de liberdade irritou demais Theodor Adorno, o grande teórico da música do século 20: “O que para o jovem Hindemith dava a impressão de ser revolucion­ário pode de fato exprimir-se pela palavra francesa ‘rudesse’. Sua música distingue-se por certa vulgaridad­e do som e do habitus que não tem medo do banal, sem amor pelo detalhe (...) Foi Hindemith quem trouxe este fermento para a música alemã”. Giselher Schubert, diretor do Instituto Hindemith de Frankfurt, rebate: “Na verdade, Adorno infelizmen­te – e curiosamen­te – aproxima-se da tendência nacional-socialista quando qualifica sua música como ‘não-alemã’”.

Ao contrário, afirma Jacques Viret, da Universida­de de Estrasburg­o. O compositor foi “a própria encarnação da consciênci­a histórica de nossa época”. Não foi neoclássic­o por oportunism­o. Sua relação com o passado é componente fundamenta­l de sua personalid­ade. “O princípio tonal podia abrigar formas e engendrar outras linguagens musicais além das do período clássico e romântico, tributária do que se chamou a ‘tonalidade harmônica’. Todo o seu esforço, enquanto teórico, consistiu em fecundar novos ovos no interior do vasto campo da tonalidade”.

Por tudo isso, é fundamenta­l o gesto de Marco Aurélio Scarpinell­a Bueno em relação ao resgate de Hindemith. Sem ele, a música do século 20 fica muito menor, menos nuanceada, mais maniqueíst­a.

✽ É CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DO LIVRO ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO XXI’ (ED. PERSPECTIV­A)

Paul Hindemith foi parceiro de Brecht, teve o apoio do grande Furtwängle­r, mas, perseguido pelo regime nazista, passou anos esquecido até seu resgate

 ?? FESTIVAL BRECHT DE AUGSBURG ?? Provocação. Montagem no Festival Brecht de Augsburg da ópera ‘Lehrstück’, composta em 1929, parceria do compositor com Brecht
FESTIVAL BRECHT DE AUGSBURG Provocação. Montagem no Festival Brecht de Augsburg da ópera ‘Lehrstück’, composta em 1929, parceria do compositor com Brecht
 ?? YARM SCHOOL ?? Nos EUA. ‘The Long Christmas Dinner’, de Thornton Wilder
YARM SCHOOL Nos EUA. ‘The Long Christmas Dinner’, de Thornton Wilder
 ??  ?? PAUL HINDEMITH: MÚSICO POR INTEIRO AUTOR: MARCO AURÉLIO SCARPINELL­A BUENO
EDITORA: TIPOGRAFIA MUSICAL 308 PÁGINAS
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PAUL HINDEMITH: MÚSICO POR INTEIRO AUTOR: MARCO AURÉLIO SCARPINELL­A BUENO EDITORA: TIPOGRAFIA MUSICAL 308 PÁGINAS R$ 65
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