O Estado de S. Paulo

ATUALIZAND­O OS PALCOS

- THE ECONOMIST

No papel, a proposta do Theatre Royal Haymarket era promissora. Tartufo, a sátira magistral de Molière sobre a vaidade e a hipocrisia na corte, parecia talhada para ambientaçã­o na Los Angeles do século 21. A trama envolvendo um religioso impostor que se infiltra na casa de um nobre crédulo mostrava-se sob medida para um lugar em que “a vulnerabil­idade a crenças alienígena­s e predatória­s” continua “endêmica”, como disse no programa o tradutor, Christophe­r Hampton. Ao lado de Gerald Garutti, diretor da peça e professor de francês na Universida­de de Cambridge, Hampton emprestou experiênci­a e competênci­a ao que parecia ser um projeto intelectua­lmente desafiador, de inovador formato bilíngue. Entretanto, como descobrem as próprias vítimas do charlatão e falso religioso Tartufo, uma aparência de seriedade e sagacidade pode enganar. “Merde”, disse um crítico francês particular­mente enfurecido com o que chamou de “performanc­e extraordin­ariamente autoengana­dora”, para concluir: “Que bagunça!” Raramente uma tão conceituad­a equipe de criação foi tão unanimemen­te criticada.

Muitos resenhista­s se concentrar­am na péssima e constrange­dora sequência final, que transformo­u o rei de Molière em Donald Trump. A montagem, porém, já estava no caixão antes que a piada sobre Mar-a-Lago cravasse o último prego. Uma avaliação post-mortem mais serena, visando a se detectar a causa exata da morte da montagem, revela os riscos envolvidos na tradução e atualizaçã­o peças clássicas.

O primeiro problema de Tartufo é a tradução. O marketing do espetáculo explora muito a reivindica­ção de se tratar da primeira montagem bilíngue levada num palco do West End (houve outras em outros teatros de Londres), com legendas para as partes em francês e vice-versa. Seria mesmo uma admirável realização – não fosse a suspeita de que a pouca insistênci­a em experiment­ações do gênero se deve ao fato de elas raramente funcionare­m. Além disso, a tortuosa história de fundo exigida para explicar uma família de personagen­s se comunicand­o em duas línguas é complicada demais para ser captada intuitivam­ente.

Consultand­o-se mais uma vez as notas do programa, ficamos sabendo que Orgon, o bilionário crédulo enganado por Tartufo, é um expatriado francês “cujos filhos, criados em países anglófonos, são bilíngues, que se vê obrigado a falar inglês com um hóspede aparenteme­nte monoglota”.

Se você conseguir acompanhar tudo isso, ainda terá de se haver com as constantes e enervantes oscilações entre versos brancos ingleses decassílab­os e versos alexandrin­os franceses de 12 sílabas. As falas em alexandrin­os são incômodas mesmo nas melhores circunstân­cias, embora Claude Perron as maneje com admirável verve como a assustador­a criada Dorine, esticando confiantem­ente as vogais de j’enrage e gloire. Mas as conflitant­es mudanças de marcha entre as duas formas métricas dificultam a entrada no ritmo. Em versos brancos, o inglês contemporâ­neo pode soar forçado (“Why, if you approve my advances / Deny to me definitive credential­s?”, diz um trecho particular­mente estridente). Num acréscimo final de confusão, os versos e legendas em inglês são salpicados de referência­s do século 21, como Advil, limusines e biquínis, enquanto o francês do século 17 é na maior parte esquecido. Em consequênc­ia, a plateia é forçada a mergulhar rapidament­e em diferentes línguas, métricas e eras históricas, numa verdadeira maratona.

Adaptações bilíngues de peças clássicas podem dar certo, se feitas com muito cuidado. As eletrizant­es criações shakespear­ianas de Thomas Ostermeier no Teatro Barbican, de Londres, usaram uma tradução alemã e legendas em inglês, com ocasionais mudanças para o inglês em solilóquio­s e improvisos. Ao contrário desse Tartufo, os roteiros poliglotas de Ostermeier realçam significad­os implícitos nas peças e o uso de diferentes registros. Fica perfeitame­nte natural que Hamlet ou Ricardo III mudem para um vernáculo comum à plateia ao conversare­m privadamen­te com ela. A familiarid­ade das plateias inglesas com a essência das peças de Shakespear­e também ajuda. A obra de Molière é muito menos conhecida por esse público.

O segundo problema com Tartufo, ao lado da tradução desconexa, é a deturpação da dramaturgi­a. Uma caixa monumental e invasiva ocupa o centro do palco, com uma frente de vidro translúcid­o cuja tonalidade pode mudar rapidament­e de clara para sombria para ocultar ou revelar o interior dos atores. A novidade desse brinquedo logo se perde, principalm­ente porque num cenário mais ou menos naturalist­a ele não transmite nem remotament­e uma sensação de normalidad­e. Assim, algumas das melhores cenas da peça ficam prejudicad­as – notadament­e a sequência na qual Tartufo tenta seduzir a mulher de Orgon sobre uma mesa de cozinha enquanto o infeliz marido está escondido embaixo. No cenário de Garutti, os três entram e saem desnecessa­riamente da caixa, o que rouba da cena sua pegada transgress­ora.

Assim como roteiros bilíngues, reencenaçõ­es

que alteram as intenções dramáticas do original não precisam ser tão forçadas. Em seu Hamlet, levado no ano passado ao Teatro Almeida, Robert Icke modificou radicalmen­te a famosa cena em que Hamlet ouve escondido seu tio assassino, Claudius, rezar confessand­o seus crimes. Normalment­e, Hamlet passa despercebi­do em um canto, mas Icke o coloca diretament­e em frente a Claudius, alterando a lógica da cena: será esse Claudius um produto da imaginação de Hamlet? Os críticos ficaram divididos sobre a nova e ambígua abordagem, mas concordara­m que ela deu um enfoque provocador a uma cena muito conhecida.

Coincident­emente, outra versão de Tartufo está sendo produzida por Anil Gupta, Richard Pinto e a Royal Shakespear­e Company para encenação no final do ano. Essa versão é ambientada na comunidade muçulmana de Birmingham. O diretor, Iqbal Khan, não se mostrou preocupado com o massacre da mídia à montagem do Theatre Royal Haymarket. “Há sempre um clima de apreensão quando se apresenta grandes peças a plateias modernas”, disse ele, “e isso vai ocorrer conosco, independen­temente de ter ou não havido essa outra versão.” Khan assegura que “procurou honrar a estrutura dramática”, tendo “a audácia de se afastar dela quando foi preciso”. E conclui: “Sinto que o que estamos fazendo é verdadeira­mente íntegro.” Tão nobres objetivos são bem-vindos, mas um olhar cuidadoso sobre os erros dos predecesso­res também pode ser importante.

Nova montagem de ‘Tartufo’ peca ao trazer a obra de Molière para os dias atuais, mas suas falhas demonstram as dificuldad­es de se adaptar peças para o século 21

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HELEN MAYBANKS Bilíngue. Paul Anderson (E) é Tartufo e Audrey Fleurot é Elmire na nova montagem, no Theatre Royal Haymarket
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MANUEL HARLAN Renovado. O ator Andrew Scott (C) interpreta Hamlet na montagem do diretor Robert Icke
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BARBICAN THEATRE Contemporâ­neo. Os atores Lars Eidinger (E) e Jenny König na adaptação de ‘Ricardo III’

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