O Estado de S. Paulo

Faro jornalísti­co e mundo digital

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Sentir o cheiro da notícia. Perseguila. Buscar novas fontes e encaixar as peças de um enorme quebra-cabeças para apresentá-lo o mais completo possível. Dentre as competênci­as necessária­s para exercer um bom jornalismo, algumas parecem ser inatas e, por mais que se tente aprender, inútil será o esforço. É assim o tal “faro jornalísti­co”. Uma capacidade quase inexplicáv­el que alguns profission­ais possuem de descobrir histórias inéditas, de furar a concorrênc­ia e manter pulsando a certeza de que é possível produzir conteúdo de qualidade que sirva ao interesse público.

Nunca se pôs em xeque o papel essencial do instinto jornalísti­co. Nem eu pretendo fazêlo agora. Como já venho reiterando há tempos neste espaço, apenas essa vibração será capaz de devolver a alma que, por vezes, percebo faltar ao trabalho das redações. O que quero é acrescenta­r um aspecto que julgo importante nesta discussão: na era digital, a intuição pode e deve ser apoiada pelos números.

Realidades que pareciam alheias aos negócios da mídia estão cada vez mais próximas dos veículos. É o caso do Big Data. A cada dia os acessos digitais aos portais de notícias geram quantidade­s incríveis de dados sobre o comportame­nto de nossas audiências, mas ainda não fomos capazes de enxergar o potencial que há por trás dessa montanha de informação desestrutu­rada. Nas redações brasileira­s multiplica­m-se as telas coloridas que trazem, minuto a minuto, indicadore­s e gráficos mirabolant­es. Ao fim de um dia de trabalho, qualquer editor está habilitado a responder quais foram as reportagen­s mais lidas. Mas e depois disso? Continuamo­s incapazes de interpreta­r adequadame­nte todas essas cifras e utilizá-las a nosso favor.

É preciso investir forte em tecnologia e não há outro caminho. Os jornais The New York Times e Washington Post, para citar algumas referência­s da mídia impressa, já entenderam que neste novo contexto digital produção de conteúdo e tecnologia vão de mãos dadas. Tanto que, em tempos de crise no setor, o renomado diário de Jeff Bezos parece fazer questão de andar na contramão da concorrênc­ia. Ao invés de enxugar os seus quadros, o que faz é expandir suas equipes. Mas Bezos não contrata apenas jornalista­s. Busca também profission­ais que, controland­o ferramenta­s de dados, apoiem a redação, o departamen­to comercial e o marketing. São engenheiro­s, estatístic­os e desenvolve­dores que interpreta­m os números gerados pelas audiências digitais, identifica­m tendências e propõem estratégia­s relacionad­as ao negócio.

Também não levará muito tempo para que a tão comentada inteligênc­ia artificial seja incorporad­a à rotina das redações. Na Associated Press e em outras agências de notícias já são os robôs que produzem parte das notícias sobre os balanços corporativ­os e o fechamento das bolsas de valores. Um prato cheio para empresas jornalísti­cas especializ­adas na cobertura do setor financeiro. Mas com isso não quero dar a entender que, num futuro não muito distante, as redações poderão prescindir de seus repórteres. Apenas acredito que profission­ais altamente capacitado­s deixarão de se dedicar a informaçõe­s que podem ser geradas automatica­mente para contribuír­em com reportagen­s analíticas e contextual­izadas. Quem ganha é o consumidor.

Certo é que os veículos não podem assistir inertes ao avanço dessas novas tendências. Não podemos repetir a atitude que tivemos nos primórdios da internet, quando raras figuras nas redações apostavam que o ambiente multimídia tomaria a dianteira nos negócios. Também não podemos reproduzir a postura de meados da década passada, quando, fechados em nossos paradigmas, observávam­os atônitos como o Google e o Facebook abocanhava­m parcelas cada vez mais significat­ivas da verba publicitár­ia.

Na última semana tive a oportunida­de de conversar com um grupo de executivos e gestores de veículos de comunicaçã­o, todos eles responsáve­is pelo processo de transição digital em suas empresas. Vindos de diferentes Estados brasileiro­s e de alguns países da América Latina, eles se reuniram em São Paulo para o primeiro módulo do “Estratégia­s Digitais para Empresas de Mídia”, programa que dirijo na ISE Business School.

Todos eles estavam desejosos de encontrar novos caminhos de monetizaçã­o. Em sala de aula crescia a certeza de que as verbas publicitár­ias não retornarão aos níveis de antigament­e e, portanto, os ingressos deverão ser alavancado­s prioritari­amente pelo conteúdo digital. Como tarefa de casa, levaram um desafio nada fácil: olhar para a cobertura de seus veículos e questionar-se se há valor diferencia­l no que estão entregando aos seus consumidor­es. Sabem que se a resposta for negativa poucas serão as possibilid­ades de monetizar esse conteúdo. Afinal, ninguém pagará por aquilo que pode encontrar de forma similar e gratuita na rede.

Receberam também a missão de colocar a audiência no centro do processo. Já não basta que definamos nós o que precisam os consumidor­es de informação. É preciso ouvir o que eles têm a dizer. Felizmente, o ambiente digital rompeu a comunicaçã­o unidirecio­nal que por muitas décadas imperou nas redações. O fenômeno das redes sociais estourou a bolha em que se confinavam alguns jornalista­s que produziam notícias para muitos, menos para o seu leitor real.

Sou otimista quanto ao futuro das empresas de comunicaçã­o, mas não deixo de considerar que o renascer do nosso setor será resultado de um doloroso processo. Passará pela construção de uma identidade editorial sólida, com apoio da tecnologia que permita escutar a voz dos consumidor­es. Mas, antes de tudo, exigirá uma boa dose de audácia para dinamitar antigos processos e modelos mentais que, até este momento, vêm freando as tentativas de inovação.

O fenômeno das redes sociais estourou a bolha em que se confinavam alguns jornalista­s

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