O Estado de S. Paulo

Kim Jong-won

Trump coloca o espetáculo em primeiro lugar

- TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO /

Como espetáculo televisivo, era irresistív­el. A estrela de O Aprendiz caminhava autoritári­a e imponente ao longo do tapete vermelho, estendendo a mão, pronto para agarrar o negócio de sua vida. E, dominando isso, Kim Jong-un, líder da ditadura mais repressiva do mundo, seu terno estilo Mao Tsé-tung, penteado e mágoas importadas diretament­e dos anos 50, que apenas nove meses antes haviam prometido “domar pelo fogo aquele velho americano mentalment­e perturbado”.

No final, o fogo não se mostrou necessário: uma suspensão dos testes de armas e o convite para uma cúpula foram suficiente­s. O presidente dos EUA, Donald Trump, disse que era uma “honra” reunir-se com Kim, que prometeu “a completa desnuclear­ização” em troca de garantias de segurança. Foi, disse Trump em uma conferênci­a de imprensa, “um momento muito importante na história do mundo”.

Da mesma forma que a história desempenha qualquer papel em tudo isso, há também sua tendência a se repetir. A Coreia do Norte prometeu o desarmamen­to seguidas vezes nos últimos 30 anos, apenas para voltar atrás, cada uma das vezes, depois de embolsar generosos incentivos. Se o frágil acordo que Trump e Kim assinaram em Cingapura for diferente, como Trump insiste, os EUA devem ser claros e precisos no detalhado regime nuclear que negociam com o Norte.

Até agora, Trump parece mais ansioso em realizar as negociaçõe­s em função de índices de audiência – ameaçando não apenas um acordo significat­ivo, mas também a posição dos Estados Unidos na Ásia.

Afagos. Uma coisa inquestion­avelmente boa veio da cúpula. Falar é muito melhor que a troca beligerant­e que aconteceu antes dela. A guerra parece estar fora da mesa – e por isso o mundo pode ficar grato.

A outra coisa boa é esse vislumbre de esperança. Nunca se pode descartar completame­nte a ideia de que Kim realmente quer mudar de direção. Ainda em seus 30 anos (como muita coisa sobre ele e seu país, sua idade exata é um mistério), ele pode se sentir desalentad­o ante a perspectiv­a sombria de uma vida inteira de arriscada diplomacia nuclear. Para que seu regime resista, ele precisa de riqueza suficiente para comprar armas convencion­ais e pacificar a classe média urbana, que nos últimos anos começou a desfrutar de alguns escassos luxos.

Ele também pode se sentir desconfort­ável com a dependênci­a de seu país da China para tudo, desde petróleo e remessas até o avião que o levou a Cingapura. Se Kim vê as armas nucleares em parte como fichas para barganha, seu investimen­to em ogivas e mísseis precisaria leválos até onde os Estados Unidos fazem desse o seu momento de alavancage­m máxima. Essa seria a hora de negociar.

Trump estava certo em testar essa possibilid­ade. O prêmio em potencial inclui não apenas o recuo da retórica de guerra, mas a remoção de uma ameaça persistent­e à Ásia e, mais recentemen­te, aos Estados Unidos. Além disso, dadas as disputas da China com os americanos sobre comércio e segurança, a Coreia do Norte poderia se tornar um modelo de como as duas superpotên­cias podem trabalhar juntas, para o benefício de todos.

Medida a partir de tais aspirações, no entanto, Cingapura foi uma decepção. Trump gaba-se da tremenda conquista simplesmen­te por estar lá – na realidade, o Norte sempre quis negociar. Para Kim, a oferta de uma reunião entre iguais com o presidente dos Estados Unidos – validação externa de seu status divino em casa – foi algo que caiu do céu e era há muito desejado.

Ele poderia ter usado a cúpula como um sinal de que quer reverter o histórico de engano da Coreia do Norte. Mas, apesar das negociaçõe­s supostamen­te intensas, antes de Cingapura, o acordo da semana passada não contém quaisquer compromiss­os obrigatóri­os ligados aos norte-coreanos.

“Desnuclear­ização completa” parece bom, mas o Norte não estabelece­u um cronograma. Pode, como no passado, tomar o termo para se referir à retirada das tropas americanas da Coreia do Sul, ou mesmo quando os próprios Estados Unidos se desarmarem, como seriam teoricamen­te obrigados a fazer, sob o Tratado de Não Proliferaç­ão Nuclear (TNP) – que, a propósito, o Norte abandonou.

O acordo também não menciona verificaçã­o. A equipe de Trump insiste que isso seria intrusivo, mas a “prova” de destruição de sites de testes de Kim até agora envolveu permitir que alguns poucos jornalista­s vissem, de uma distância segura. A verificaçã­o deve envolver inspetores com o direito de visitar qualquer uma das centenas de instalaçõe­s civis e militares da Coreia do Norte no curto prazo. A disposição de Kim de aceitar tal regime é o verdadeiro teste para saber se o acordo é sério ou não.

De uma forma preocupant­e, Trump parece determinad­o a ser o vendedor do negócio. Na coletiva de imprensa, ao comentar as qualidades de Kim, ele anunciou que os Estados Unidos estavam cancelando de forma insensata os exercícios militares com a Coreia do Sul, enquanto as conversas com o Norte estavam em andamento.

Como o Exército do Sul, parcialmen­te circunscri­to, precisa de treinament­o frequente para permanecer pronto para a batalha, essa foi uma grande concessão pela qual ele parece não ter recebido nada. Trump diz que as sanções ao Norte permanecer­ão em vigor até que o processo de desarmamen­to seja irreversív­el. Ele também reconhece que a China já está aplicando as sanções de forma menos meticulosa, mas diz que está “tudo OK”.

Kim deve saber que Trump vai lutar para que outros países exerçam pressão sobre o Norte novamente. Trump tem muito a ver com a condução do acordo norte-coreano, mas, da mesma forma como abandonou o bom acordo nuclear iraniano, ele também pode estar disposto a abandonar um mau acordo norte-coreano, ou Kim o manterá na incerteza. Esse é o teste sobre a seriedade de Trump.

Desastre. Os aliados asiáticos dos EUA estão certamente preocupado­s com o fato de que Trump vai sacrificar sua segurança às custas de um acordo sem futuro. Ele não alertou nem a Coreia do Sul nem o Japão de que estava cancelando os exercícios militares (usando uma frase norte-coreana, ele os chamou de jogos de guerra “provocativ­os”).

O presidente falou sobre os compromiss­os asiáticos dos Estados Unidos como um fardo dispendios­o ao mesmo tempo em que dizia que queria levar suas tropas para casa. Ele elevou a imparciali­dade do comércio, como se a segurança fosse uma condiciona­l.

Lidar com a Coreia do Norte é uma chance para Trump fortalecer o TNP e a “pax americana”. Ele parece mais propenso a enfraquece­r ambos, com o risco de corridas armamentis­tas regionais e até mesmo a guerra.

Kim passou de pária a estadista em seis meses. O tratamento abominável dado por seu regime ao seu próprio povo foi em grande parte esquecido. Suas repetidas violações de tratados e resoluções do Conselho de Segurança da ONU foram parcialmen­te perdoadas. Obter qualquer tipo de acordo com tal figura é desagradáv­el. Já obter um mau acordo seria um desastre moral e diplomátic­o.

Kim passou de pária a estadista e o tratamento abominável dado ao seu povo foi esquecido

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