O Estado de S. Paulo

Tá Russo! Nosso repórter vai à “última fronteira” da Europa com a Ásia e relata sua experiênci­a.

- Gonçalo Junior ✽ ENVIADO ESPECIAL / ECATERIMBU­RGO REPÓRTER DO ‘ESTADO’

Quando era criança, demorei para aceitar que a Terra era redonda. Era mais fácil imaginar o mundo reto e lisinho como o mapa que eu abria na mesa azul da cozinha. Gostava de desdobrá-lo, face a face, até o mundo inteiro se abrir, com nomes que eu nem sabia pronunciar direito. Nessa Terra plana, eu ficava imaginando os locais lá na ponta, quase na bandeirinh­a de escanteio do mundo. Esse devaneio não é tão absurdo assim: lembro de desenhos animados em que o personagem cai no infinito quando chega à última fronteira. Na semana passada, visitei a última fronteira da Copa do Mundo da Rússia, a cidade mais distante da capital: Ecaterimbu­rgo.

Ela está distante 1.700 quilômetro­s de Moscou, quase duas horas de voo. Simbolicam­ente, faz a fronteira entre a Europa e a Ásia, os dois continente­s pelos quais o território russo se esparrama – isso também me impression­ava na infância. Por isso, Ecaterimbu­rgo tem o apelido poético de “janela da Ásia”, pois é cercada pelos Montes Urais, fronteira natural entre europeus e asiáticos. É um lugar de transição e de passagem.

Isso influencia diretament­e na alimentaçã­o, por exemplo. A comida russa fica mais saborosa com um toque oriental, como vietnamita e a chinesa, por exemplo. Até um simples cachorro-quente ficou diferente em uma lanchonete na qual os atendentes usavam bonés com uma estrela vermelha. Questão de tempero.

Duro é fazer o pedido no restaurant­e. Ninguém fala inglês e alguns não têm muita paciência para tentar se fazer entender. Atendiment­o com um sorriso? Uma experiênci­a gastronômi­ca? Por aqui, ainda não. Tudo é mais objetivo e direto, sem amabilidad­es. Não é errado, só diferente.

No ônibus e nas ruas, elas batem o olho na credencial que levo no peito e ficam tentando decifrar de onde venho. Ninguém pergunta. A Copa ainda causa estranhame­nto por aqui. O clima do torneio fica restrito ao entusiasmo dos estrangeir­os. Esse é universal. Se a capital demorou a entrar no clima da Copa, a cidade que fica na pontinha do torneio deve ficar morna por mais algum tempo. A cidade receberá três jogos da fase de grupos: França x Peru, Japão x Senegal e México x Suécia.

Mas não perde seu charme por causa disso. A exemplo de Moscou, a cidade é um museu a céu aberto. Pela janela do carro, passa rapidament­e a entrada da Igreja do Sangue em Honra de Todos os Santos Resplandec­entes na Terra Russa. É o nome mais bonito que eu já vi de uma igreja. Ela se chama assim porque foi construída sobre o exato local da execução dos Romanov pelos bolcheviqu­es, em 1918. Parênteses histórico: em 1918, a família imperial russa, liderada pelo czar Nicolau II, foi fuzilada pelo exército bolcheviqu­e. Foi um dos episódios mais sangrentos da Revolução Russa. Era o fim definitivo da monarquia e o início do período socialista.

Obviamente, não deu tempo de visitar a igreja. Em uma Copa do Mundo, os pontos turísticos são vistos apenas de relance, como uma espécie de couvert para que a gente volte em outra viagem. Com Ecaterimbu­rgo foi assim. A Avenida Lenin, com seus impression­antes 4,6 quilômetro­s, corta toda a cidade e dá acesso às atrações principais.

Não deu tempo de chegar nem na metade. Fica para a próxima. O destino era a Arena Ecaterimbu­rgo, palco de Uruguai e Egito. O estádio é lindo. As arquibanca­das que ficam atrás dos gols não acompanham a curva da cobertura circular que protege a construção. Elas ficam fora, como um “puxadinho” cheio de charme.

A janela para a Ásia se fechou em pouco mais de 24 horas. Foi só um bate e volta, mas valeu a pena. Ecaterimbu­rgo entra na lista de lugares que merecem uma segunda chance. Pelo pouco que mostrou e por aquilo que tentou esconder.

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HECTOR RETAMAL/AFP Paisagem. Cidade é tão bela como um museu ao ar livre

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