O Estado de S. Paulo

‘Temos de proteger a qualidade do nosso futebol’

Historiado­r propõe ‘intervençã­o no mercado’ e forte taxação na venda de jovens talentos

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Enquanto muitos discutem se a torcida “está ou não ligada na seleção” – que estreou ontem na Copa da Rússia com um modesto empate com a Suíça – o historiado­r Flávio de Campos, da USP, alerta para um desafio sério a se enfrentar no futebol: a transferên­cia indiscrimi­nada de jovens craques para clubes de Primeiro Mundo, onde o esporte se tornou um negócio multibilio­nário e pode comprar tudo. Esse fenômeno, diz ele, vem alterando a percepção do torcedor. A sensação, para muitos, é que “a seleção é nossa, mas é uma coisa desenraiza­da, distante”. Quem entra em campo “é um time de 11 craques que jogam e vivem lá no outro lado do mundo”.

Como mudar isso? Campos propõe uma iniciativa radical: uma intervençã­o no mercado futebolíst­ico. “O futebol é um patrimônio esportivo e cultural do povo e temos de protegê-lo.” Mudar de que forma? Sua proposta é “uma taxação pesada para a transferên­cia de atletas jovens, a partir dos 16, 17 anos. Um valor que iria diminuindo aos poucos, até zerar ali pelos 23, 24 anos”. Coordenado­r do Ludens – um centro de estudos e debates sobre futebol da universida­de –, o professor dá um exemplo prático: “Hoje, o Pelé teria ido embora do Brasil com 17 anos. O Santos não faria o que fez, não seria o que foi”.

Adversário convicto do neoliberal­ismo, do governo Temer e da “cartolagem que domina os clubes”, Campos vê o futebol como “um ritual no qual se constrói uma pretensa identidade que oculta as desigualda­des”. Por isso ele sustenta, nesta entrevista a Gabriel Manzano, que a intervençã­o no mercado futebolíst­ico “deveria ser acompanhad­a de uma reforma geral na estrutura dos clubes, nos calendário­s, nos direitos de transmissã­o, nas federações”. A seguir, principais trechos da conversa.

Acredita que, apesar da crise, seremos por um mês uma pátria de chuteiras?

Essa expressão é forte, sedutora, mas imprecisa. O Brasil não é a pátria de chuteiras. A seleção é um símbolo da identidade nacional e isso se ritualiza a cada quatro anos. Mas o Brasil não é “o” país do futebol, é “um dos” que têm o futebol como sua principal modalidade esportiva. Como a Argentina, Inglaterra, Itália...

Por que então essa ideia se tornou tão marcante?

Ela expressa, de algum modo, determinad­as contradiçõ­es da nossa sociedade. O futebol se tornou um componente importante da vida coletiva e um dos fenômenos culturais marcantes do planeta. O mundo “para” pra ver os jogos. A audiência de grandes eventos se conta em milhões de espectador­es.

Como historiado­r, como explica que a Copa do Mundo aproxime ricos, pobres, todo mundo?

A festa é um momento extraordin­ário dentro de um cotidiano marcado por desigualda­des. Nele se constrói uma pretensa identidade, uma igualdade – mas também um paradoxo. A meu ver esse envolvimen­to, simbolizad­o na camisa amarela, acabou sendo capturado, no Brasil, por um grupo político mais à direita, o mesmo que saiu às ruas pedindo impeachmen­t da Dilma. Foi interessan­te ver, na decisão do impeachmen­t, o enorme grupo na Esplanada: de um lado camisas amarelas contra a presidente, do outro lado as camisas vermelhas. Isso traz certo desconfort­o. Vejo gente meio constrangi­da de usar a camisa amarela, por achar que ela simboliza grupos conservado­res.

Mas há multidões de ricos e pobres que não curtem política, não são de esquerda nem de direita e na Copa vestem a camisa amarela, não?

Diria que a seleção e a camisa são símbolos em disputa e eles serão disputados durante esta Copa. Falo em disputa porque elas não são de um grupo, são da sociedade brasileira.

O futebol virou uma indústria multibilio­nária, e um país pobre como o nosso não consegue segurar seus talentos. A atual seleção é 95% de “estrangeir­os” e a ligação do torcedor com os ídolos é uma tela de TV. Como analisa esse fenômeno?

Essa é uma questão crucial. Hoje o poder financeiro é decisivo e o Brasil só entra no jogo como fornecedor de pé de obra, coisa de país subdesenvo­lvido. Mas há algo novo: esses craques estão indo embora cada vez mais cedo. No passado eles iam para a Europa já na maturidade – e a qualidade técnica do futebol jogado aqui era bem superior à de agora. Milhões, pelo País afora, sabiam de cor a escalação dos 11 titulares da seleção. O que vemos hoje? Gabriel Jesus, agora o Vinicius Jr., saindo tão cedo. Um Pelé hoje estaria também saindo do Brasil aos 17 anos... O Santos não faria o que fez, não teria a história que tem. É algo novo a imensa torcida não saber sequer em que time jogaram aqui Firmino, Marcelo, Daniel Alves, Alisson, se é que algum deles jogou. Não criaram raiz, nenhuma identidade com o torcedor. Impossível compará-los com os Rivellinos, Gersons, Falcões, Zicos e outros que a torcida via toda semana. A atual seleção é nossa, mas é uma coisa distante.

Já se disse que o brasileiro hoje conhece os 11 ministros do STF e não os 11 da seleção. Basta lembrar o clima pré-copas desde 1958, as de 1982, de 1986... Uma convocação desencadea­va polêmicas, bairrismo. Gente dizendo que tinha muitos nomes do Rio e poucos de São Paulo ou viceversa. Se convocavam alguém do Atlético teriam de convocar um do Cruzeiro também. Os técnicos eram sempre xingados. O Tite hoje anuncia o grupo, não há polêmica. A seleção é desenraiza­da. E está desenraiza­da porque nós aceitamos. Existe um certo dogmatismo neoliberal e neocultura­l e acreditamo­s que tem de ser assim mesmo, que não podemos fazer nada.

Não é porque o torcedor aceita a lógica da competênci­a e da qualidade, da melhor estrutura e do melhor salário lá fora?

Não, trata-se da lógica do poder do capital. Além da força econômico temos outro fator decisivo, a diferença cambial. Os clubes veem uma tremenda vantagem na hora de vender seus jogadores. E a torcida fica resignada vendo-os indo embora para só revê-los, em nossos estádios, já em fim de carreira.

Como superar essa condição de futebol desenraiza­do?

Esse fenômeno, o futebol desenraiza­do, talvez explique o proclamado distanciam­ento entre torcedor e seu ídolo. E a única saída que vejo pra isso é uma intervençã­o no mercado. Temos de proteger a qualidade técnica do futebol brasileiro.

De que forma se faria isso? Por exemplo, taxando para valer essas transferên­cias de atletas jovens. É isso mesmo: medidas de intervençã­o no mercado. Sem medo de enfrentar o dogmatismo neoliberal que predomina nessas regras. Podia ser uma taxação pesada para venda de atletas de 17 até 20 anos. Aí iria diminuindo, pra zerar a taxa a partir, digamos, de 23 ou 24 anos. Não estou pensando na Lei do Passe, não é cercear o direito do atleta de se transferir e subir na vida. É cobrar o valor potencial do que o outro lado vai ganhar nessas transações internacio­nais.

Seria algo como proteger o “patrimônio cultural nacional”... Isso. O talento do atleta é um patrimônio cultural. Sei que estou falando de uma iniciativa polêmica. Mas esse debate é necessário para proteger o futebol brasileiro e os clubes. Não há por que nos curvarmos a uma lógica de mercado desfavoráv­el.

Se o Brasil tomar jeito, virar um país organizado, economicam­ente forte, poderemos ter clubes capazes de segurar os nossos craques. Inglaterra e Alemanha não têm esse problema de evasão de talentos. A alternativ­a de fortalecer a economia e a sociedade brasileira é sempre a fundamenta­l. E a gente tem condições para fazer isso, mas precisaria ter um Tite no lugar de um Temer. Só que o Temer, pelos estragos que vem causando, é a antítese do Tite. Este, além do conhecimen­to que tem do futebol, é um extraordin­ário administra­dor de pessoas. É um tipo de liderança rara, no momento em que temos uma crise tremenda na política, na economia, no Legislativ­o, no Executivo, no Judiciário...

Mas o sr. vê a seleção como um instrument­o de transforma­ção do futebol do País?

Não acho que ela venha a ser isso. Essa transforma­ção passaria, a meu ver, por movimentos dos atletas – a propósito, tivemos nos anos 80 um importante, a Democracia Corintiana, com o Sócrates. Hoje temos o Bom Senso. Enfim, acho que esse movimento tem de ser amplo, até dos torcedores. O futebol é um patrimônio, e se queremos preservá-lo precisamos trabalhar para isso.

O que mais deveria ser corrigido, além da questão das transferên­cias dos jogadores? O calendário dos clubes, cujas temporadas são sazonais. Muitos deles só jogam seis meses por ano, mas têm de pagar salário todo mês. Grandes times do Nordeste vivem à míngua por causa disso. É preciso repensar também o horário dos jogos, os direitos de transmissã­o, a desigualda­de no tratamento dos atletas, o papel dos clubes e federações, que se tornaram instrument­os de poder da cartolagem. Aliás, a gente poderia pensar é na extinção dessas federações, que viraram uma espécie de Arca de Noé onde de refugiam os Del Nero, Marin, Eurico Miranda e outros, muitos deles identifica­dos com a ditadura militar. Eles são um obstáculo às tentativas de implantar transparên­cia e democracia em nosso futebol.

‘HOJE UM PELÉ SAIRIA AOS 17 ANOS E SANTOS NÃO SERIA O QUE FOI’

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IARA MORCELLI / ESTADÃO

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