O Estado de S. Paulo

Uma visão magnífica do mundo em ruínas

‘Panorâmica Insana’, de Bia Lessa, traz bom elenco e técnicas simples

- Maria Eugênia de Menezes

Pi – Panorâmica Insana é o título do novo trabalho de Bia Lessa. A princípio, o nome não parece trazer muitas pistas do que se verá em cena. O que seria, afinal, uma ‘panorâmica insana’? Mas é precisamen­te isso que a diretora entrega: um passeio amplo pelo mundo – em suas mazelas, milagres e acontecime­ntos fortuitos –, apresentad­o sem uma ordem aparente.

Após anos de silêncio, a diretora retornou ao teatro em 2017 com uma adaptação de Grande Sertão: Veredas. Grandiosa, a montagem criava uma instalação na qual o público podia ter uma experiênci­a sensível do sertão. Além do apuro na criação das imagens, o som também entrava como forte componente para levar o espectador a empreender uma viagem até um mítico interior de Minas Gerais, onde Guimarães Rosa ambientou suas histórias.

Em Panorâmica Insana, Bia Lessa não toma como apoio nenhum grande título da literatura ocidental – um expediente frequente em sua trajetória –, mas se aventura justamente por uma dramaturgi­a fragmentad­a. Não há propriamen­te uma trama, mas uma colagem de textos escritos por Jô Bilac, Julia Spadaccini e André Sant’anna, além de trechos de obras de Franz Kafka e Paul Auster.

Essa costura de breves histórias resulta irregular. Há situações ora mais, ora menos interessan­tes. Mas essa fragilidad­e, talvez, não seja necessaria­mente uma falha do espetáculo. Ou, indo um pouco mais adiante, se poderia pensar que esse esgaçar da dramaturgi­a é uma falha, sim. Porém, uma falha constituti­va e necessária para o que se dará no palco.

Não por acaso, o cenário escolhido para o espetáculo é um teatro em ruínas. Um espaço, que antigament­e abrigou um teatro, esperava o início de obras de revitaliza­ção quando foi descoberto pela produção de Pi. Essa falta de acabamento do texto encontra, portanto, uma dimensão física, material. Em um grande galpão, diante de uma arquibanca­da onde o público se acomoda, estão espalhadas cerca de 11 mil peças de roupa.

Nessa balbúrdia, os quatro atores – Claudia Abreu, Leandra Leal, Luiz Henrique Nogueira e Rodrigo Pandolfo – vivem centenas de personagen­s. A plateia passa algum tempo em suspensão, sem saber se está diante de um completo improviso. Cada vestimenta encontrada vem acompanhad­a por um nome, por um passado, por um relato, por um número de RG. Será tudo escolhido a esmo?

Há uma precisão matemática a conduzir aquele suposto caos, como se estivéssem­os diante de um balé exaustivam­ente coreografa­do. Uma música, uma pausa, uma inflexão: qualquer mínima coisa serve como deixa para cada um dos movimentos empreendid­os. Somadas, a falta de acabamento do texto e a encenação minuciosa criam uma encenação capaz de abarcar o mundo, como parece ser o seu ambicioso propósito.

Crianças que nascem, doenças, guerras, gente que escapa da morte e nem sabe o porquê. Esse desfile incessante de humanidade não se sustenta apenas no mecanismo da encenação, mas nos intérprete­s e em suas habilidade­s. O que se convencion­ou de chamar de teatro pós-moderno ou pós-dramático – e costuma fazer o público fugir como o diabo da cruz – é aqui tão bem executado a ponto de não se colocar como questão. Quem assiste não está preocupado em encontrar um enredo com começo, meio e fim porque o que lhe é oferecido no lugar soa mais consistent­e.

Leandra Leal impression­a pela força de sua presença. Além de encarnar os papéis mais comoventes da montagem – a atriz também deixa o espectador entrever como faz o seu jogo. Claudia Abreu é outro dos pilares de sustentaçã­o da peça. Ela entra e sai dos personagen­s, muito à vontade. Joga com o humor da situação. Deixa-se ver não apenas na pele dos outros, mas na sua própria. O que está em evidência é uma técnica elaborada e rara, um domínio absoluto do corpo que é seu instrument­o de trabalho.

Em um espetáculo mais voltado à ação do que ao texto, todas as imagens construída­s em cena adquirem um peso extra. No cenário de ares apocalípti­cos, onde tudo parece estar em absoluta desordem, alguns efeitos sobressaem. Assim como já havia feito em Grande Sertão: Veredas, a diretora dá lugar de destaque ao som. Desta vez, acerta ao usá-lo com mais sobriedade para sublinhar algumas passagens e criar os relevos desejados. Igualmente simples são os recursos usados no desenho da vertiginos­a cena final do espetáculo. É essa precarieda­de, tão cerebral quanto amorosa, a fazer de Pi – Panorâmica Insana um dos grandes momentos dessa temporada.

 ?? NILTON FUKUDA / ESTADÃO ?? Balbúrdia. 11 mil peças de roupa servem para atores criarem os personagen­s
NILTON FUKUDA / ESTADÃO Balbúrdia. 11 mil peças de roupa servem para atores criarem os personagen­s

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