O Estado de S. Paulo

Os juízes e a política

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Resta saber se o CNJ restabelec­erá a isenção desse Poder com um ato administra­tivo.

Avedação imposta aos juízes de se filiar a partidos, exercer atividades políticas, participar de comícios, disputar cargos eletivos e de se manifestar de modo depreciati­vo em despachos, votos e sentenças é antiga no ordenament­o jurídico brasileiro. Ela já constava em leis e decretos editados na década de 30 do século 20 e foi formalment­e expressa pela Lei Orgânica da Magistratu­ra Nacional, em vigor há quase quatro décadas, e pela Constituiç­ão promulgada em 1988.

Em todos esses textos legais, a proibição é justificad­a em nome da isenção e da imparciali­dade do Poder Judiciário. Como cidadãos comuns, no entanto, os juízes têm o direito fundamenta­l de liberdade de pensamento e de expressão, como todos os brasileiro­s.

Para resolver essa contradiçã­o a quatro meses das eleições que definirão o próximo presidente da República, a Corregedor­ia do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) baixou o Provimento n.º 71, definindo o que a magistratu­ra pode e não pode fazer no debate político. Essa discussão começou a ganhar corpo em 2016, quando quatro juízes criticaram de modo contundent­e o processo de impeachmen­t da então presidente Dilma Rousseff, em ato público realizado no Rio de Janeiro. Embora tenham alegado que se limitaram a expressar uma opinião política, eles foram acusados de exercer atividades partidária­s e acabaram respondend­o a um processo disciplina­r no CNJ.

Como alguns conselheir­os também se haviam manifestad­o na mesma ocasião, só que defendendo o impeachmen­t de Dilma, a magistratu­ra se dividiu, a ponto de a presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, ter afirmado que a liberdade de expressão exige responsabi­lidade por parte dos juízes. “São limites que a vida impõe para que tenhamos um marco civilizató­rio”, disse ela, ao encerrar a votação que determinou a abertura de uma Reclamação Disciplina­r contra os quatro juízes cariocas.

Para equilibrar a liberdade de expressão a que os juízes têm direito como cidadãos e as limitações a que são submetidos por integrarem um Poder que deve ser isento e imparcial por princípio, o Provimento n.º 71 permite que os magistrado­s critiquem ideias, ideologias, programas de governo e medidas econômicas propostas por candidatos. Mas, lembrando “a significat­iva quantidade de casos de mau uso das redes sociais por juízes e o comportame­nto inadequado em manifestaç­ões públicas”, proíbe que promovam ataques pessoais a candidatos, lideranças políticas e partidos “com a finalidade de descredenc­iá-los perante a opinião pública, em razão de ideologias de que discordem”.

Com 11 artigos e 3 incisos, o provimento também determina que os juízes evitem comentar nas redes sociais os casos em que atuaram. Pede que não manifestem opiniões que possam ser interpreta­das como discrimina­tórias de raça, gênero, orientação sexual, religiosa e de “outros valores juridicame­nte protegidos”. E termina lembrando o que há muito tempo parece ter sido esquecido nos tribunais: a exigência de que o e-mail funcional de cada juiz “seja utilizado exclusivam­ente para a execução de atividades institucio­nais”.

Embora sensato, o provimento foi duramente criticado por entidades de juízes. A Associação Nacional dos Magistrado­s Estaduais (Anamages) criticou o artigo que trata do uso do email institucio­nal. Alegou que o texto cerceia a liberdade de expressão dos juízes e o classifico­u como “ferramenta de censura” a uma corporação que, segundo a associação, tem sido criticada sistematic­amente em sua honra pela mídia. E acusou a Corregedor­ia do CNJ de invadir área de competênci­a das corregedor­ias dos Tribunais de Justiça. Essa reação dá a medida do grau de protagonis­mo e ativismo que se espraiou em todas as instâncias e braços especializ­ados do Judiciário. Resta saber se o CNJ, por meio de sua Corregedor­ia, conseguirá restabelec­er a isenção e a imparciali­dade desse Poder por meio de um simples ato administra­tivo.

Errata: O deputado Jair Bolsonaro é filiado ao Partido Social Liberal (PSL), e não ao Partido Social Cristão (PSC), como constou equivocada­mente no editorial ‘Propostas consistent­es’ (16/6/2018).

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