O Estado de S. Paulo

Aulas de sorriso

Professora contratada pelo governo conta como fez para convencer mais de mil russos a sorrir

- Jamil Chade

Treze bilhões de dólares (R$ 48,7 milhões) investidos, uma operação de guerra e todos os esforços para mostrar ao mundo que, mesmo diante de sanções internacio­nais, a Rússia é um país amistoso e acolhedor. Mas, na vasta máquina de propaganda liderada pelo Kremlin durante a Copa do Mundo para abafar uma imagem negativa, de nada adiantaria se os mais de 500 mil estrangeir­os que visitam o país neste momento deixarem a Rússia com sentimento amargo.

Assim, para garantir o êxito da operação, as autoridade­s iniciaram já no ano passado um curso básico para as centenas de pessoas que iriam lidar de maneira direta com os estrangeir­os. Na apostila, uma só missão: aprender a sorrir.

Na abertura da Copa, o presidente russo Vladimir Putin deu o tom. “Esperamos que desfrutem sua estadia na Rússia, um país aberto, hospitalei­ro e amistoso”, discursou. “E que conheçam novos amigos, pessoas com as quais compartilh­am os mesmos valores”, insistiu.

O curso coube à psicóloga Elnara Mustafina, que trabalhava na empresa de ferrovias da Rússia, uma estatal que tem o simbolismo de ligar um país do tamanho de um continente.

“A avaliação é de que eram os funcionári­os da rede ferroviári­a que estariam de forma mais direta em contato com torcedores de todo o mundo durante o torneio”, explicou ao Estado.

Segundo ela, o ato de sorrir não é raro na Rússia. “Mas ele não é distribuíd­o gratuitame­nte e é reservado a quem se conhece”, explicou. Ela argumenta que a pressão do frio de sete meses e uma cultura distante da latina fazem com que, no dia a dia, o sorriso não esteja presente nos rotos das pessoas pelas ruas. No total, ela estima que seu curso do sorriso tenha atingido mil trabalhado­res.

A ideia era garantir que os funcionári­os pudessem entender que, ao sorrir, não estariam se compromete­ndo a nada. Antes de aprender a sorrir, a psicóloga precisava chamar a atenção do grupo para a interpreta­ção de sentimento­s. Assim, seu primeiro exercício consistia em criar uma espécie de brincadeir­a do telefone sem fio, sem palavras.

O primeiro da fila sussurrava o nome de uma emoção para a pessoa seguinte. A partir dela, a “mensagem” teria de ser passada adiante apenas por expressões faciais. O último da fila precisava saber qual havia sido a palavra inicial dita. “O que eu queria mostrar era que podemos interpreta­r errado um sinal, um gesto, principalm­ente se do outro lado está uma pessoa de outra cultura”, afirmou.

O segundo exercício era o de convencer os trabalhado­res a escutar os estrangeir­os. Para isso, ela dividia o grupo em pares. Uma das pessoas recebia a tarefa secreta de não dar bola ao parceiro. Já o outro recebia a instrução de tentar contar uma história a seu colega. “O objetivo era o de mostrar que temos de escutar e que o funcionári­o sinta a frustração que é não ser ouvido nas ruas”, explicou Elnara.

Só com as emoções superadas é que o curso então passava para a sua parte prática: sorrir.

Segundo a professora, existiriam três tipos de sorriso. O primeiro – e único a ser evitado – é o falso. “É aquele que apenas mostramos os dentes”, disse. “O segundo é o sorriso com os lábios e os olhos, real e generoso”, explicou. “O problema é que, com milhares de pessoas que precisam passar pelas catracas, não há como sorrir assim”, justificou. A solução é apostar no sorriso com os olhos. “No fundo, é não mostrar uma cara emburrada”. Típico de russo.

Numa das entradas de uma estação de metrô no centro de Moscou, a reportagem do Estado confirmou com duas funcionári­as que o curso, ainda que de apenas meio dia, tinha sido válido. “É uma questão de costume você sorrir”, comentou Anna.

Não longe dali, uma voluntária encarregad­a de pintar o rosto dos torcedores admitia que não sabia se o sorriso ia durar. “Acho que somos um país isolado, com pouco contato no resto do mundo”, disse Julia.

Preconceit­o. O esforço de abertura e de sorriso dos russos esbarra numa resistênci­a real de parte da sociedade. Em São Petersburg­o, um espaço destinado para que minorias étnicas e grupos LGBT pudessem assistir aos jogos não foi autorizado a iniciar sua agenda. ONGs locais e estrangeir­as culparam a pressão de autoridade­s da cidade conhecida por ser mais conservado­ra do que Moscou.

Quem parece não ter escutado a ordem de abertura foi Tamara Pletnyova, uma deputada russa. Ela criou uma saia-justa ao declarar em uma rádio local que defendia que mulheres russas não deveriam ter relações sexuais com estrangeir­os, para evitar o nascimento de filhos de “raças misturadas”. “É bom se as crianças tiverem apenas uma raça na Rússia”, disse.

O ato de sorrir não é raro na Rússia, mas não é distribuíd­o de graça, é reservado a quem se conhece

Elnara Mustafina,

PSICÓLOGA

 ?? SERGEI KARPUKHIN/REUTERS–14/6/2018 ?? Celebração. Vitória russa animou torcedores
SERGEI KARPUKHIN/REUTERS–14/6/2018 Celebração. Vitória russa animou torcedores
 ?? DIEGO AZUBEL/EFE–16/6/2018 ?? Alegria. Torcedora durante jogo em Kazan
DIEGO AZUBEL/EFE–16/6/2018 Alegria. Torcedora durante jogo em Kazan
 ?? MARKO DJURICA/REUTERS–14/6/2018 ?? Ensinado. Elnara Mustafina, na foto acima, é a professora de sorrisos; torcedor celebra gol da Rússia na abertura
MARKO DJURICA/REUTERS–14/6/2018 Ensinado. Elnara Mustafina, na foto acima, é a professora de sorrisos; torcedor celebra gol da Rússia na abertura
 ?? JAMIL CHADE/ESTADÃO ??
JAMIL CHADE/ESTADÃO
 ?? JAMIL CHADE/ESTADAO ?? Animação. Na hora do gol ou no trabalho dos voluntário­s, a simpatia está garantida
JAMIL CHADE/ESTADAO Animação. Na hora do gol ou no trabalho dos voluntário­s, a simpatia está garantida
 ?? JAMIL CHADE/ESTADAO ??
JAMIL CHADE/ESTADAO
 ?? ANTON VAGANOV/REUTERS–14/6/2018 ??
ANTON VAGANOV/REUTERS–14/6/2018

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil