O Estado de S. Paulo

A África quer voar alto

Senegal estreia com a missão de colocar sua equipe – e todo o continente – em evidência no Mundial

- Gonçalo Junior ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU

Uma das raras boas lembranças do Mundial de 1990 é a volta olímpica dos jogadores de Camarões após a partida com a Inglaterra, nas quartas de final. Eles perderam o jogo, mas foram aplaudidos de pé. Foi um marco. Atenta, a Fifa viu ali um fato novo: a ascensão do futebol africano, ofensivo, alegre e irresponsa­velmente feliz. Na Copa seguinte, a entidade deu mais duas vagas para o continente. Depois de 24 anos, esses bilhetes valeram pouco. O futebol africano parou. Senegal tenta resgatar o passado promissor a partir de hoje, diante da Polônia, em Moscou, às 12h (de Brasília).

Depois do sucesso de Camarões, o máximo que as equipes conseguira­m foi igualar o feito dos Leões Indomáveis. Foi o que fizeram esse mesmo Senegal (2002) e Gana (2010). A Nigéria chegou apenas às oitavas em 1994 e 1998. As Águias repetiram o feito em 2014, agora ao lado da seleção da Argélia.

A Copa da Rússia começou nebulosa para os africanos. Todos os quatro que jogaram até agora perderam seus jogos: Tunísia, Egito, Nigéria e Marrocos. Em alguns casos, a chance de classifica­ção já é remota. O Egito decide sua sorte contra os donos da casa hoje. A Nigéria perdeu para a Croácia e ainda terá a Argentina (desesperad­a) pela frente. Resta Senegal.

“Não entramos pressionad­os pelos resultados ruins dos outros times africanos. São coisas diferentes”, afirmou o técnico senegalês Aliou Cissé.

Aos 42 anos, o treinador mais jovem do Mundial reconhece o declínio dos times africanos nas últimas décadas. “Nós podemos fazer mais. Mas nós estamos aqui”, disse. “Temos realidades diferentes em outros continente­s, mas temos nossas qualidades e estamos aptos a ganhar do Brasil, Alemanha e outros. Nós não temos complexo em relação aos europeus. Temos vários africanos nas grandes ligas do mundo.”

Cissé pode falar do presente e do passado. Ele foi o capitão senegalês na campanha histórica de 2002 ao lado de grandes nomes, como Diouf, Fadiga e Papa Boupa Diop. A comissão técnica conta ainda com outros dois jogadores de lá: Tony Sylva e Omar Daf. “Naturalmen­te são feitas muitas comparaçõe­s, mas aquele time já criou a parte dele na história. Nós temos bons jogadores e podemos criar a nossa história”, diz o técnico.

Formação. Vários fatores explicam a estagnação do futebol africano. Um deles é a falta de capacitaçã­o de treinadore­s nas categorias de base. Falta gente para formar os meninos. Quem opina é o empresário Paulo Pan, que realiza projetos de intercâmbi­o esportivo com vários países africanos que têm financiame­nto de Ministério dos Esportes, federações e Comitês Olímpicos de cada país. “Não existem bons treinadore­s de base nem uma formação científica adequada”, opina o ex-jogador, que já levou ao Brasil atletas africanos de várias modalidade­s.

Pela falta de um mercado interno forte e competitiv­o, os países africanos exportam seus craques para a Europa. Com isso, não conseguem ter um campeonato forte. É um círculo vicioso. Camarões não consegue produzir a mesma quantidade de craques que o Brasil e a Argentina, por exemplo.

Com isso, as seleções vivem de estrelas solitárias. O Egito aposta em Salah; Senegal deposita todos os seus francos em Sadio Mané, do Liverpool. Todos os convocados atuam no exterior. Cinco deles jogam na primeira divisão inglesa; outros cinco atuam na elite francesa. Entre os destaques estão o zagueiro Koulibaly, do Napoli, e o atacante Keita Baldé, do Monaco. O treinador nega que o time dependa de Mané. “Ele é um jogador único, mas temos um jogo coletivo”, disse o treinador.

Outro problema do continente africano é a questão política. Vereadores, deputados e até ministros interferem diretament­e nos clubes de futebol, dos programas de treinament­o à escalação do time e até nos torneios. Poucos projetos têm continuida­de e planejamen­to de médio prazo.

O último entrave é estrutural. Treinadore­s que trabalhara­m no continente apontam que faltam centros de treinament­os e academias – enfim, a estrutura básica para formar atletas. Um cenário parecido com o que o Brasil vivia décadas atrás.

Desafios. O técnico de Senegal é otimista e destaca a necessidad­e da busca de uma identidade esportiva. “Um dia, teremos um africano como campeão. Um passo importante é que a África comece a formar seus próprios treinadore­s.”

Seu desafio de fazer com que Senegal avance à próxima fase, resgatando o prestígio que teve 16 anos atrás, corre paralelame­nte a um traço pessoal: é o único negro entre os 32 que comandam as seleções na Rússia. “A cor da pele não é tão importante. O futebol é universal. Faço parte de uma nova geração de treinadore­s que trabalha em boas equipes e quer se firmar.”

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BARTLOMIEJ ZBOROWSKI/EFE Coletivo. Senegal não quer depender só de Mané, a estrela do time

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