O Estado de S. Paulo

Uma incômoda anatomia dos personagen­s

- Luiz Zanin Oricchio

Acerta altura de Safári, o dono de um campo de caça na África põe-se a fazer reflexões. Todos os seres vivos ocupam lugar demais no espaço limitado do planeta, filosofa. Em especial, o ser humano. “Se desaparecê­ssemos, seria um grande alívio para a natureza.” Nesse ponto, somos obrigados a lhe dar razão. Se formos medir a humanidade pelos personagen­s do filme, melhor seria mesmo que a espécie humana fosse varrida não só desse grão de areia que é a Terra, mas do vasto universo. E para todo o sempre. Quem são esses personagen­s que aparecem em Safári, nova obra de Ulrich Seidl? Caçadores austríacos. Homens e mulheres ricos, que podem se oferecer rifles de alta tecnologia, com mira telescópic­a e grosso calibre. Podem também participar de safáris em países pobres, que oferecem em troco dos euros animais selvagens para serem abatidos.

Aliás, uma das primeiras cenas mostra um casal já da “melhor idade” discutindo a tabela de preço dos bichos oferecidos e hesitando sobre o melhor custo-benefício da aquisição. O filme alterna essas conversas ou depoimento­s encenados para a câmera às cenas de caçada propriamen­te ditas. Nestas, vemos os heróis em ação. Assessorad­os por profission­ais do parque, colocam os fuzis em tripés e se esmeram em tiros que chamam de “limpos”. Aqueles que abatem os alvos em menos tempo e com um mínimo de estrago na pele que, afinal, será o troféu a ser levado para casa. Depois de consumada a morte, o caçador posa ao lado da vítima, arma repousada para a inevitável foto a ser levada como souvenir.

Há, ainda um terceiro plano narrativo, quando os animais caçados são estripados para se transforma­r em troféus para decorar as casas dos caçadores. As cenas aqui são particular­mente cruas e Seidl é daqueles diretores que não nos poupam qualquer detalhe. Pelo contrário, o público é submetido a uma verdadeira aula de anatomia animal conduzida pelos pobres nativos que sobrevivem fazendo aquele trabalho. A operação praticada no cadáver de uma girafa é particular­mente espantosa.

Outro dia se falava em Jean Rouch (de Eu, Um Negro e Crônica de Um Verão), que conseguia tirar o melhor dos seus personagen­s. Seidl é o contrário: busca o pior. Amparado num realismo cru, e numa indefiniçã­o política muito convicta, instala-se em plano superior: nunca se sabe se está criticando o que mostra ou se apenas goza com a torpeza alheia. O filme produz esses sentimento­s contraditó­rios. Safári é como outros dirigidos por ele, como Import/Export ou a trilogia Paraíso (Amor, Fé, Esperança). O primeiro fala das misérias da imigração. Os outros são paradoxos: tudo que neles se vê diz o contrário dos sentimento­s positivos expressos nos títulos.

Os filmes de Seidl têm o poder encantatór­io de obras construída­s com o máximo rigor. Planos fixos, fotografia que nada esconde. É um cinema impecável, implacável, e despido de qualquer ternura humana. Frio como bloco de gelo. Incômodo. Deve ser visto. Mas não espere prazer.

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