A herança de um neoconcreto, o poeta Ferreira Gullar
Na exposição ‘Relevos’, o crítico muda de lugar com o artista e revela o avesso do teórico que se colocou à prova real
O poeta maranhense Ferreira Gullar (1930-2016), refletindo sobre sua condição, escreveu (no livro Sobre Arte, 1982) que “crítico e artista estabelecem uma aliança tácita”. O artista se torna teórico e o crítico se torna artista. Foi mesmo o que aconteceu, um pouco por acaso, com o próprio Gullar, que, em 2014, dois anos antes de sua morte, concordou em exibir seus relevos em papel, “brincadeiras” em que retrabalhava formas de artistas com os quais conviveu – a neoconcreta Lygia Clark – ou simplesmente admirou – como Mondrian. Essas brincadeiras acabaram virando A Revelação do Avesso, parceria da UQ Editions com a Dan Galeria, 60 relevos em papel que deram origem a obras em aço e um livro de arte com poemas escritos pelo próprio Gullar.
A edição se esgotou, mas os originais desses relevos estão em exposição na Dan Galeria e revelam mais que o avesso de Gullar. Eles representam uma espécie de defesa visual da tese neoconcreta de um poeta que rompeu com os concretos – por discordar da estrutura matemática dessa poesia – e redigiu há quase 60 anos (em 1959) o Manifesto Neoconcreto, criando no mesmo ano a teoria do não objeto, que não significa propriamente um objeto inexistente, mas uma obra nascida da evasão do espaço virtual e da ação pictórica.
O ‘avesso’ desses relevos nasceu de forma acidental. Gullar, dizia ele, estava recortando um papel de cor verde quando o avesso, que era de outra cor, se mostrou. Ele colou o recorte e a cor cinza acabou se impondo num estimulante confronto cromático que se multiplica por 85 relevos assinados pelo artista na mostra, dos quais 60, como se disse anteriormente, foram transpostos para o aço nas edições da UQ em parceria com a Dan Galeria.
“Gullar contava também que o gato dele, que vivia enfiado num bicho da Lygia Clark, deu um tapa na folha de papel colorido usado numa de suas colagens e embaralhou os recortes, obrigando-o a colar como estavam, ou seja, na desordem em que se encontravam”, lembra o marchand Peter Cohn, que foi apresentado ao crítico por Macaparana há 15 anos. “Creio que a Revelação do Avesso é um pouco a metáfora da poética do Gullar, essa compulsão em se expor como o fez em seu Poema Sujo”, conclui Cohn. / A.G.F.