O Estado de S. Paulo

Do bullying ao estrelato

Vítima de comentário­s jocosos na infância, Cristiano Ronaldo entra em campo para classifica­r Portugal

- Gonçalo Junior ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU

O jogador mais temido nessa primeira etapa da Copa do Mundo e grande esperança de vitória de Portugal na partida de hoje contra Marrocos, em Moscou, quase desistiu da carreira por causa de bullying na infância. Quando tinha 10, 11 anos e saiu do Nacional da Ilha da Madeira para jogar no Sporting, Cristiano Ronaldo era vítima de piadinhas e gozações dos meninos da capital. O problema era seu sotaque – os madeirense­s têm um jeito mais carregado de falar –, diferente do de Lisboa.

Diziam que ele não falava direito. Não era nada do outro mundo, mas, naquela época, o melhor jogador do mundo ainda não tinha a marra e a autoconfia­nça de hoje. Por isso, caía no choro no vestiário. Aí, os colegas dobravam as chacotas. Ele se sentiu tão discrimina­do que pediu para deixar o clube. A carreira do (até agora) astro da Copa quase foi por água abaixo.

Foi preciso que a família fosse falar com a direção do Sporting. Na aquela época, ainda não havia a palavra bullying, mas a irmã mais velha, Elma, deu piti. Disse que se o irmão não fosse bem tratado, ela própria o levaria embora. Deu uma semana. Funcionou. Nunca mais riram do jeito de falar do atleta que ganharia cinco Bolas de Ouro.

Dolores Aveiro, a mãe de Cristiano Ronaldo, conta essas histórias pouco conhecidas sobre o astro com entusiasmo. Ela sabe que está revelando pequenos tesouros. Seus tesouros. Nem todos estão na biografia

Mãe Coragem, que ela lançou no Brasil no mês passado.

Ela estará hoje no estádio de Luzhniki, em Moscou, para torcer para que o filho caçula e o mais bem-sucedido de quatro irmãos consiga sua primeira vitória na Copa. Os dois – mãe e filho – têm um ritual que precisa ser repetido antes de cada jogo: acender uma vela para Nossa Senhora de Fátima. O jogador acende uma; ela acende outra. “Ele não é superstici­oso, mas tem muita fé. Acredita”, revela a senhora de 63 anos ao Estado.

Mais um pouco sobre o bullying. A razão de Cristiano Ronaldo se sentir tão deslocado na capital portuguesa é porque ele já era um pequeno ídolo no bairro Funchal. Na época, tinha o apelido de Abelhinha, um elogio à sua rapidez no futebol, pois ele passava na frente de todo mundo para ficar com a bola.

Seu primeiro campo foi a própria

rua de terra de casa. Os gols eram feitos de pedras, os famosos paralelepí­pedos. Quando o carro vinha, o jogo parava. Quando não havia amigos suficiente­s, Ronaldo ficava chutando a bola na parede.

O futebol era vida e sonho do menino que não tinha iogurte em casa todo dia. Era um luxo. Quando tinha um potinho, ele fazia questão de fazer um furo embaixo e beber de cima para baixo. Dona Dolores só conseguia comprá-los com as gorjetas que recebia como auxiliar de cozinha. Um dia, o gerente decidiu que as gorjetas seriam apenas para os garçons. O craque ficou sem iogurte. Ele sempre perguntava para a mãe por que seus colegas tinham roupas mais bonitas que as suas. A mãe não respondia e ia para o quarto chorar.

Tempos difíceis. O pai de Cristiano Ronaldo, Dinis, nunca foi o mesmo depois da guerra. Em 1961, se juntou às forças portuguesa­s para combater um clamor das colônias por independên­cia. Dinis voltou, mas era como se não tivesse voltado. Ronaldo não pegou essa época, mas só os reflexos na relação do pai e da mãe, que praticamen­te se esfarelou. Bebida. Violência.

Nesse contexto, Dolores decidiu interrompe­r sua quarta gravidez. Esse episódio está no livro. A vizinha recomendou que bastava ferver uma cerveja preta e bebê-la de uma vez. A reação seria espontânea. Não foi. No parto, ela jura que o médico disse: “Com uns pés como esses, vai ser jogador de futebol”.

Dinis conseguiu se reerguer, parou de beber e arrumou um emprego no Clube de Futebol Andorinha, um clube de bairro em Santo Antonio, para ser uma espécie de roupeiro. O resto é a história do melhor jogador do mundo que quase foi interrompi­da nas cruéis brincadeir­as das crianças das categorias de base do Sporting.

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FRANCISCO LEONG/AFP Ritual. Antes do jogo, CR7 acende uma vela para N.S. de Fátima – e a mãe, outra
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