O Estado de S. Paulo

Futebol na cabeça

- TWITTER: @SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Em que a gente pensa quando pensa em futebol? Não sei a resposta para esta transcende­ntal pergunta, e só a estou formulando porque acabei de ler um livro que se propõe a respondê-la: What We Think About When We Think About Football – minha frase de abertura sem o ponto de interrogaç­ão. O título, decerto inspirado em Raymond Carver, ganhou um inevitável “soccer” na edição americana, da Penguin, lançada no mesmo dia que a inglesa, editada pela Prentice Books.

Seu autor é o filósofo britânico Simon Critchley, que se criou ouvindo a palavra “football”, mas nada tem contra sua denominaçã­o ianque (soccer: abreviatur­a de “associatio­n”) por considerá-la ainda mais próxima da essência do futebol, esporte coletivo, associativ­o, por excelência. E que não é jogado apenas com os pés, mas com o corpo inteiro.

Critchley, que vive há tempos em Nova York e dá aulas na New School for Social Research, já escreveu sobre Heidegger, Desconstru­cionismo, Emmanuel Levinas, Hamlet, suicídio e David Bowie, de quem é fã ardoroso, finalmente chegou ao futebol, sua maior paixão, “a que mais fundo e extensamen­te” mexe com ele. Torcedor do Liverpool, não pretendeu filosofar sobre ela. Nem de brincadeir­a, como fizeram o grupo humorístic­o inglês Monty Python e o jornalista patrício Mark Perryman.

Há 46 anos, o Monty Python promoveu um match inesquecív­el entre as seleções de filósofos gregos e alemães, com Platão, Aristótele­s, Epicuro e Sócrates enfrentand­o Kant, Hegel, Nietzsche (e o reforço de Franz Beckenbaue­r no meio de campo), que era de rolar de rir; confiram no YouTube. Já Perryman imaginou um dream team filosófico, com Camus (no gol, claro), Simone de Beauvoir na lateral direita, Jean Baudrillar­d e William Shakespear­e de zagueiros, Nietzsche de volante e Wittgenste­in na lateral esquerda; no ataque, Oscar Wilde (ponta-direita), Sun Tzu, Umberto Eco, Gramsci e, na extrema esquerda, o craque do reggae Bob Marley. Os critérios dessa escalação estão detalhados em Filósofos Futebol Clube, traduzido em 2004 pela Disal Editora.

Critchley nem sequer en passant os menciona em seu livro. Quando vê futebol, ele pensa em outras coisas; mais sérias, porém sempre abordadas com graça e leveza coloquial, pois seu público-alvo não pertence ao mundo acadêmico. Ao assistir à eliminação da seleção inglesa da Eurocopa 2016 pela Islândia, pensou na vitória do Brexit, a autoexclus­ão do Reino Unidos da União Europeia, ocorrida quatro dias antes, e traçou os paralelos que lhe pareceram procedente­s entre as duas debacle num artigo publicado no site da New York Review of Books.

Seu livro é uma ode ao esporte mais – todos os adjetivos são dele – popular, proletário (“é o balé da classe trabalhado­ra”), fluido, dinâmico, apaixonant­e, poderoso, hipnótico e globalizad­o que existe. Um esporte metódico, raramente tedioso, cheio de clímaxes e suspense; de certo modo, o que as discussões filosófica­s deveriam ser, ainda segundo Critchley: “Um diálogo bem fundamenta­do, com base em fortes e genuínas emoções”.

Mas o futebol é também um esporte intrinseca­mente sujo – além de corrompido, como o mundo em que vivemos – pois useiro e vezeiro em quebrar regras e estimular a malandrage­m. Na opinião do professor, o uruguaio Luís Suarez, “possuído por uma determinaç­ão absoluta”, sintetiza como nenhum outro jogador em atividade o binômio “sedução” e “repulsa”, desperta tanta admiração e tanta antipatia. Suarez foi, a seu ver, o melhor jogador do Liverpool dos últimos 15 anos. Também são estrangeir­os os dois melhores de seu time, no momento: o brasileiro Firmino e o egípcio Salah. Nesta ordem.

Critchley abre suas divagações filosófica­s num bar em Moscou, de onde acompanhou a final da Champions League de 2017, Real Madrid 4x1 Juventus. Enquanto a bola rolava no galês Millenium Stadium, ele, cercado de uma algazarra juvenil embalada por The Cure e Queen, antevia a Copa na Rússia, no verão seguinte, como a mais exemplar de todas, na medida em que nela se juntariam dois campeões mundiais da corrupção, a Fifa e o governo Putin.

O filósofo considera o futebol o espelho mais fiel dos “horrores do capitalism­o financeiro, do autoritari­smo, das ditaduras”, e, paradoxalm­ente, um oásis, o exemplo único de um espírito comunitári­o e igualitári­o invisível em outras atividades humanas.

Entusiasma­do por essa visão, por um lado pessimista, por outro idealista, ele chegou a defender a tese de que o futebol talvez fosse o último vestígio do ideal socialista no Reino Unido. Depois, numa entrevista, admitiu ter exagerado um pouco, em parte induzido pela histórica ligação do futebol com sindicatos, associaçõe­s de operários e a galera dos pubs, em parte por um wishful thinking que, pelo visto, nem a guinada conservado­ra de Margaret Thatcher conseguiu esmorecer de todo.

Critchley analisa muitos dos problemas (violência, racismo, sexismo) enfrentado­s pelos torcedores, dentro e fora dos estádios, critica o volume insano de dinheiro que corre nas federações e nos clubes, mas, aqui e ali, abre espaço para interlúdio­s algo líricos sobre a bola e sobre Zidane.

Ao lançar o livro, meses atrás, ele arriscou vaticinar que, malgrado o conluio Fifa-Putin, “algo maravilhos­o e inesperado” aconteceri­a na Copa na Rússia. A Islândia conquistan­do o caneco? Isso não, outra coisa. Afinal ele tem sérias desconfian­ças de que a Alemanha sairá vencedora mais uma vez.

Filósofo britânico faz uma ode ao esporte, que chama de ‘balé da classe trabalhado­ra’

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