O Estado de S. Paulo

O grito ganha mais uma

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As excessivas concessões aos grevistas ainda causarão muitos prejuízos ao País.

Omais grave da aprovação pela Câmara dos Deputados, na quarta-feira passada, de um generoso pacote de benefícios a transporta­doras não é o fato de o relator do projeto ser ele mesmo, dono de uma transporta­dora. O deputado Nelson Marquezell­i (PTB-SP), o relator, jura que não há conflito de interesses, já que, diz ele, a tal empresa, que distribui bebidas, agora pertence aos filhos. Mas isso é apenas um detalhe pitoresco diante da monstruosi­dade – mais uma – destinada a favorecer um setor da economia em detrimento de todo o resto, como parte do pagamento de resgate aos caminhonei­ros e às empresas transporta­doras que sequestrar­am o País com a greve de maio passado.

O pacote aprovado, que agora segue para o Senado, cria um plano nacional de renovação de frota de caminhões, que concederá aos felizardos compradore­s juros camaradas e prazos longos para pagamento. Além disso, as empresas que a ele aderirem terão redução das alíquotas de PIS/Cofins e de IPI sobre os caminhões novos. O custo da renúncia fiscal com mais esse benefício para o setor de transporte rodoviário ainda não foi calculado.

Há mais. O projeto isenta de tributação o vale-pedágio, que as transporta­doras, e não os caminhonei­ros, usam para pagar os pedágios. As empresas poderão abater do pagamento do PIS suas despesas com pedágio. E o transporta­dor poderá abater do Imposto de Renda o custo do pedágio.

Além disso, o projeto converte em advertênci­a as multas emitidas pela Agência Nacional de Transporte­s Terrestres (ANTT) contra caminhonei­ros que fugiram de fiscalizaç­ão até a data da publicação da lei – o que pode dar margem a que os caminhonei­ros multados exijam o ressarcime­nto do que já pagaram. E os caminhonei­ros só perderão a carteira de motorista se alcançarem 40 pontos em infrações de trânsito, em vez dos 20 pontos previstos no código de trânsito.

Apesar desse notável esforço para agradar aos caminhonei­ros e às empresas de transporte, nada garante que o País esteja livre do tremendo poder de chantagem desse setor, demonstrad­o no movimento paredista de maio. Ao contrário: ao verem atendidas quase todas as suas exigências, mesmo depois de terem transforma­do a vida dos brasileiro­s em um inferno sem sofrerem qualquer punição efetiva, os caminhonei­ros e as transporta­doras dificilmen­te se sentirão dissuadido­s de, por qualquer razão, voltar à carga no futuro.

O País parece estar totalmente à mercê deles, a ponto de admitir a violação da Constituiç­ão a favor desse grupo, nos capítulos que garantem a livre concorrênc­ia e proíbem a formação de cartel. Pois será esse o resultado da negociação para estabelece­r uma tabela de fretes, que acaba por criar um cartel privado sob patrocínio estatal. O tabelament­o era uma das principais reivindica­ções dos caminhonei­ros, mas seus efeitos deletérios sobre a economia – sem falar de sua flagrante inconstitu­cionalidad­e – deveriam ser suficiente­s para desestimul­ar essa concessão. Não foi, contudo, o que aconteceu, e neste momento caminhonei­ros e empresas estão negociando a tabela, com mediação do Supremo Tribunal Federal. Sejam quais forem os valores acertados, o resultado inevitável será o repasse do aumento de custos para os preços, especialme­nte os de alimentos, que têm forte impacto no orçamento das famílias mais pobres.

A essa conta, rateada pelo conjunto da sociedade, é preciso acrescenta­r os custos resultante­s dos subsídios concedidos para baixar os preços do diesel, outra exigência dos caminhonei­ros. Como não há espaço orçamentár­io para bancar mais esse benefício, o governo terá de tirar verbas de áreas essenciais, como saúde e educação, e cancelar outros subsídios, causando natural reação dos setores afetados.

Parece não haver dúvida de que as excessivas concessões a um movimento grevista que colocou o governo e o Congresso de joelhos ainda causarão muitos prejuízos ao País – especialme­nte porque o poder público já se provou incapaz de desestimul­ar a ousadia dos que querem ganhar tudo no grito.

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