O Estado de S. Paulo

O perigo da ‘voz do povo’

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Éum curioso exercício visitar a página do Senado na internet e, na seção chamada “e-cidadania”, observar as sugestões de cidadãos para a formulação de novas leis no País. Ali, qualquer pessoa pode fazer uma proposta, e as mais votadas podem ser convertida­s em projetos de lei. É provável que os idealizado­res dessa iniciativa tenham imaginado que, assim, aproximari­am os eleitores de seus representa­ntes no Congresso, além de permitir que esses eleitores pudessem expor o que, em sua opinião, deveriam ser as prioridade­s nacionais. Na prática, a participaç­ão dos cidadãos resulta, na maioria absoluta dos casos, em constrange­dora demonstraç­ão de paroquiali­smo e oportunism­o, emulando a atuação de muitos políticos eleitos.

Como notou recentemen­te a Coluna do Estadão, as sugestões que receberam mais de 20 mil adesões, e portanto se tornarão sugestões legislativ­as, com potencial para se transforma­rem em lei, incluem diversos favores tributário­s, como perdão para sonegação de impostos até R$ 1.000 e isenção de Imposto de Renda para diversas categorias, como professore­s e “todas as classes que componham a segurança pública”. Há também uma proposta para acabar com o IPVA e outra para reduzir o imposto sobre games, dos atuais 72% para 9% – esta foi tão bem recebida no Senado que já há senadores querendo zerara alíquota sobre esses produtos, desde que fabricados no Brasil. Pede-se também desconto de 30% para a compra de carros e imóveis por parte de policiais e professore­s.

Há ainda uma série de reivindica­ções para categorias profission­ais, como piso salarial de R$ 4.800 para fisioterap­eutas, psicólogos, assistente­s sociais, farmacêuti­cos e nutricioni­stas, ou de R $5.622 para cirurgiões dentistas–todos argumentam que precisam de salários “dignos”, porque são submetidos a cargas de trabalho “exaustivas”. Os professore­s de educação física pedem aposentado­ria especial, aos 25 anos de trabalho, em razão do “esforço físico muito grande” que fazem. E os funcionári­os públicos incluíram uma proposta que torna automático seu reajuste salarial, supostamen­te para igualar à condição do trabalhado­r da iniciativa privada.

Três propostas, com mais de 20 mil adesões cada uma, pedem a descrimina­lização da maconha. A título de exposição de motivos, um dos autores escreveu: “Não preciso divagar sobre as vantagens tanto econômicas quanto políticas que essa mudança traria”. Outra proposta, com argumentos de igual sagacidade, sugere a “permanênci­a dos cursos de humanas nas universida­des públicas”.

Masa participaç­ão dos cidadãos não se limita a propostas de evidente cunho pessoal. Há também os que pretendem, por meio de leis, resolver aquilo que entendem ser os principais problemas do País – especialme­nte no que diz respeito à corrupção. Uma das sugestões mais votadas é submeter a concurso público todos os candidatos a cargos políticos. Somente os primeiros colocados, diz a proposta, disputaria­m os votos, por meio de redes sociais e debates na TV.

Outras propostas acabam com “regalias” para ex-ocupantes de cargos do Executivo e também para deputados e senadores aposentado­s. Há também os que querem a escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal por concurso público e que os políticos acusados de corrupção sejam submetidos a júri popular.

O desastre se repete quando o eleitor é convidado a opinar sobre importante­s projetos formulados pelo Executivo ou pelo Legislativ­o. Tome-se o exemplo da reforma trabalhist­a, um dos maiores avanços realizados nos últimos tempos no País, que foi rejeitada por 172 mil dos 188 mil votantes no site do Senado. Ou então o projeto de lei que permite demitir servidores públicos estáveis em razão de insuficiên­cia de desempenho, que foi reprovado por 147 mil dos 189 mil votantes.

Apesar das aparências, contudo, essa enquete do Senado não é totalmente inútil ou meramente anedótica. Ela se presta a mostrar que, se a “voz do povo” é a “voz de Deus”, talvez o melhor seja torcer para que o Congresso se faça de surdo.

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