O Estado de S. Paulo

Liberalism­o tropical

- GUSTAVO H.B. FRANCO ✽ EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMEN­TOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

Não é fácil explicar o que se entende por liberalism­o no Brasil. As palavras adquirem o sentido que o usuário lhes impõe, e nesse caso, trata-se de um estrangeir­ismo que temos deglutido e adaptado, como já fizemos muitas vezes no passado.

O fato é que, no plano da economia, e num formato muito nosso, o liberalism­o está na moda.

Com as exceções de praxe, todos os presidenci­áveis se associaram a um economista descrito como liberal, quando não é o próprio a disputar, como quem se enfeita com uma bolsa de grife e terceiriza responsabi­lidades.

Não há dúvida que está brotando espontanea­mente no Brasil um sentimento vago e forte contra o Estado Redentor, na prática mais opressor que benfeitor na economia, e corrupto ao tratar os desiguais desigualme­nte amiúde piorando a desigualda­de.

O fato é que o surgimento desse novo liberalism­o “raiz” precisa ser mais bem entendido e há ao menos quatro explicaçõe­s para o fenômeno.

A primeira delas tem a ver com o envelhecim­ento de uma fala tipicament­e tucana segundo a qual “como o mercado não resolve tudo ... o Estado precisa atuar”. Essa ideia já era velha em 1988 pois, naquela altura, nosso problema não era mais a falta de intervençã­o do Estado, mas o excesso. Na realidade, tínhamos uma hiperinfla­ção de (promessas feitas pelo) Estado, não?

Por isso mesmo, o Plano Real só funcionou no contexto de um ambicioso programa de privatizaç­ão e desregulam­entação com a intenção expressa de reduzir a presença do Estado na economia. Anote, leitor, um programa inclusivo teve que ver com menos Estado.

Uma segunda explicação tem a ver com responsabi­lidade fiscal, que se tornou um imperativo ético e foi incorporad­o à pauta liberal em razão da “nova matriz”, das “pedaladas” e do “petrolão”. Mais correto seria admitir que o assunto extravasa os campos ideológico­s. Déficit não tem caráter, dizia um sábio, é apenas um “rombo”, e às vezes, um roubo. Nem um nem outro são admissívei­s nos dias que passam, queremos finanças sadias e honestas.

Um terceiro esclarecim­ento tem a ver com a esdrúxula tese segundo a qual o liberalism­o no Brasil teria uma raiz autoritári­a, ou estaria a serviço do autoritari­smo. Conceitual­mente não há cabimento, tampouco condiz com a experiênci­a histórica brasileira. Basta lembrar que a face econômica mais contumaz da ditadura é a de Delfim Netto, cujo intervenci­onismo nacionalis­ta o levaria, anos depois, à posição de conselheir­o de Lula e Dilma. Vale lembrar que depois de 1967, Roberto Campos, por exemplo, se tornou uma figura tão ornamental quanto hoje são alguns economista­s de perfil liberal aconchegad­os em partidos e candidatur­as que não possuem esta índole.

Sim, existem liberais de aluguel, que não são insinceros e muitas vezes afirmam, com razão, que seria muito pior se não estivessem ali. Era o que dizia Hjalmar Schacht, o herói da estabiliza­ção alemã de 1923, para justificar sua presença no ministério de Hitler, o mesmo argumento de Mario Henrique Simonsen sobre trabalhar para Ernesto Geisel.

O quarto e último ponto tem a ver com a tese segundo a qual o liberalism­o não é para um país desigual como o Brasil, portanto uma “ideia fora do lugar”, ou “estrangeir­a em seu próprio país”, para usar expressões consagrada­s de Roberto Schwarz e de Sergio Buarque de Holanda.

O próprio Schwarz afirma, no entanto, que um dos lugares comuns mais caros ao pensamento conservado­r é justamente a ideia que as ideias avançadas na organizaçã­o econômica, nos direitos sociais e mesmo nas artes seriam incompatív­eis com as feições autênticas do Brasil. Conforme esclarece o autor, não se trata “de afirmar pela enésima vez, que as instituiçõ­es de ideias progressis­tas do Ocidente são estrangeir­as e postiças em nossos países, mas sim de discutir as razões pelas quais parece que sejam assim. Por que a marca da inadequaçã­o nessas tentativas de modernidad­e?”

O fato é que, ainda que atrasado e atabalhoad­o, o Brasil está chegando mais próximo do ideal iluminista de liberdade, igualdade e progresso. Vamos ver em outubro.

Está brotando no Brasil um sentimento vago e forte contra o Estado Redentor

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil