O Estado de S. Paulo

Os fantasmas de Freddie Mercury

Cinebiogra­fia das mais aguardadas, filme sobre roqueiro nascido na África tem conteúdos reveladore­s

- Carlos de Oliveira

Está marcada para 2 de novembro a estreia em circuito internacio­nal do filme que conta a vida de um dos maiores ídolos do rock, Freddie Mercury, líder e fundador do grupo britânico Queen. Porém, ninguém precisa esperar até lá para ter uma boa ideia do que foi esse turbilhão sonoro que levou multidões a estádios e que viveu tão pouco, apenas 45 anos, muito intensamen­te.

Sua obra-prima, Bohemian Rhapsody, é uma espécie de livro aberto sobre seu talento artístico, suas angústias e seus amores. Há quem diga que os versos de sua balada operística mesclada com hard rock e muita delicadeza são impenetráv­eis. Há gente pa- ra tudo.

Há pelo menos quatro anos, tenta-se concluir essa ideia genial: contar em filme a vida de Freddie Mercury, desde seu nascimento na distante Cidade de Pedra, em Zanzibar, hoje território da Tanzânia, África. Filho de indianos parsis zoroastria­nos, Freddie nasceu Farrokh Bulsara. Pianista desde muito menino, compositor, cantor exuberante, morreu vítima da Aids, vítima irônica do amor. Por ora, o foco estará sobre a composição e o processo de gravação da dramática e operística Bohemian Rhapsody, tão magnífica quanto a apaixonada Love of my Life ou aos apelos de Somebody to Love.

A grande verdade é que as origens de Bohemian Rhapsody são obscuras ou, pelo menos, multifacet­adas. Freddie a teria escrito em sua casa, em Londres, uma versão questionad­a com doçura por Brian May, o guitarrist­a astrofísic­o do Queen. Sim, May é um respeitado astrofísic­o pelos círculos científico­s britânicos. Para ele, a música teria sido composta em estúdio, em meados dos anos 70, como a maior parte das demais do grupo. Admite, porém, que ela estava na mente de Freddie há muito tempo.

Desde o final das década de 60, afirma Chris Smith, amigo próximo de Freddie. “Ele já dedilhava no piano pequenos trechos que mais tarde se transforma­riam na Rhapsody. Ele também insinuava sugestivam­ente no piano a canção Mama, gravada por Roy Orbison em 1962. A triste e sincera confissão a sua mamma já estava esboçada há muito tempo.

Mesmo assim, só depois de mais de uma década a música começou a tomar sua forma final. O produtor Roy Thomas Baker disse que Mercury o chamou para mostrar-lhe uma ideia que o perseguia. “Sentou-se ao piano e tocou o começo. De repente, parou. Disse que a partir daquele compasso entraria uma seção da ópera! E não disse mais nada. Levantou-se e foi jantar”.

Em 1975, o Queen já era uma banda famosa e seu líder personific­ava toda a força de um cantor que sabia cantar. Freddie humilhou o estereótip­o do cantor roqueiro, aquele que tem uma voz rouca e nada mais. Tinha a voz educada, potente, de um alcance quase infinito. Os demais integrante­s da banda eram virtuosos em seus instrument­os e também bons cantores. Além de Brian May, cuidavam dos vocais

TRISTE CONFISSÃO À SUA MAMMA ESTAVA ESBOÇADA HAVIA MUITO TEMPO

o baixista John Deacon e o baterista Roger Taylor.

Apesar de todo esse suporte de talentos, a gravação de Bohemian Rhapsody levou três semanas e contou com nada menos do que 180 overdubs (novas gravações sobre a gravação original) de vocais de apoio combinados com vários instrument­os: piano acústico, baixo elétrico, guitarras elétricas, bateria e até um imenso gongo chinês. Somente depois de pronta essa “cama” de apoio é que Freddie gravou o vocal principal. A partir desse momento, pioneiro, o Queen se tornaria a primeira banda de rock a usar elementos de ópera em uma música.

Bohemian Rhapsody é uma obra-prima composta por quatro movimentos: a balada do início, a força da ópera no meio, uma enérgica seção de hard rock e um final delicado. Há quem julgue a música confusa, hermética, especialme­nte a letra. Talvez seja, mas pode haver uma explicação. Antes, porém, vale lembrar que representa­ntes da indústria da música alertaram a banda que a Rhapsody era longa demais e que dificilmen­te seria um sucesso. Erraram.

A princípio, os críticos do New York Times desmanchar­am-se em elogios, mas deixaram dúvidas no ar quanto ao significad­o da letra. Freddie, irredutíve­l, recusou-se a dar explicaçõe­s sobre sua composição. Pouco depois, mencionou que a letra refletia relacionam­entos, mas logo mudou de ideia e a redefiniu, “trata-se de um absurdo rimado aleatório”.

Os demais integrante­s, especialme­nte Brian May, respeitara­m a proteção que Freddie fazia de sua canção, mas sabiam que nela havia referência­s ocultas a traumas pessoais.

Especulaçõ­es nunca faltaram, algumas considerad­as delirantes, como a que compara a Rhapsody à tragédia de Fausto, o médico, mago e alquimista alemão Johannes Georg Faust (14801540), que vendeu sua alma a Mefistófol­is, o diabo. A figura de Fausto foi resgatada em outras obras, entre elas a de Johann Wolfgang von Goethe, que a escreveu e reescreveu ao longo de quase 60 anos.

Há os que dão interpreta­ções mais mundanas (ou simplesmen­te mais humanas) à obra. Ao compor Bohemian Rhapsody, Mercury estava no ponto de não retorno em sua vida pessoal. Ela havia se separado de Mary Austin, companheir­a de sete anos e amiga por toda a vida, para viver seu primeiro relacionam­ento com um homem.

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Malek. Ator vive o ídolo no cinema; ao lado, Mercury no Rock in Rio de 1985
20TH CENTURY FOX Rami Malek. Ator vive o ídolo no cinema; ao lado, Mercury no Rock in Rio de 1985
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ARQUIVO/ESTADÃO

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