O Estado de S. Paulo

Enrolar e procrastin­ar

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Odicionári­o registra muita proximidad­e entre o coloquial enrolar e o mais erudito procrastin­ar. Estabelece­rei sutilezas que escapam ao léxico. Quem enrola não chega ao ponto final, faz “cera”, adia, evita respostas diretas e não resolve. O procrastin­ador é mais sofisticad­o, prorroga e não cumpre prazos ou metas como o enrolado. Aquele engana o outro; este, a si próprio.

Cotidiano do enrolado: ficar na cama até o limite do possível e, por vezes, ultrapassá-lo. Se ficou o dia todo em casa, tendo apenas um compromiss­o à noite, o enrolado sai atrasado. Nada justifica o ato. O convoluto não tem nenhuma explicação plausível para suas escolhas ineficazes. Exatamente por isso, inventa muitas, mente, analisa fatores para, no fundo, reconhecer que... é um enrolado! Esse é o tipo de pessoa que fica relaxado tempo demais e, ao se aproximar o deadline, acelera, inutilment­e, o esforço. Na divisão do atacado do tempo para o varejo das ações práticas, o enrolado é um péssimo administra­dor. Ele não tem timing, a preciosa habilidade de fazer o certo no tempo adequado. Ser dotado de timing significa subir na torre da estratégia e contemplar o lago do futuro distribuin­do porções de água em partes precisas, em esforços coerentes e possíveis. Enroladore­s simplesmen­te se afogam e sucumbem. Vivem no futuro do pretérito: eu teria chegado mais cedo, eu poderia ter feito a tarefa se... O “se” é o fio para tecer a mortalha do enrolado, Penélope permanente de coisas inacabadas.

O procrastin­ador está em outro setor. Vive com culpa por causa de alguma questão interna. Enrolados são preguiçoso­s, procrastin­adores são fruto de traumas variados. Enrolado é doloso, procrastin­ador é culposo. O enrolado ignora as normas e regras, horários e agendas. O procrastin­ador chora e sofre pela incapacida­de de ir direto ao ponto, vítima inconscien­te de um labirinto confuso para o qual nenhuma Ariadne lhe fornece o fio condutor. Ele é Teseu e o Minotauro nas vielas da ordem: monstro e herói, protagonis­ta e vítima, Tesotauro desesperad­o em calabouço avesso à luz da plena consciênci­a.

Todos devem entender que o enrolador quer falhar e trabalha para isso. O procrastin­ador anela pelo sucesso, que lhe foge das mãos trêmulas como areia fina. Enrolar é opcional, procrastin­ar é sina. A escolha do enrolador é começar tudo sem terminar nada. O procrastin­ador é impedido por uma parede sólida e transparen­te que o impede de dar o passo inaugural, o primeiro degrau, que está ali, a sua frente, fácil, acessível e... impossível. O procrastin­ador é um namorado ansioso e desajeitad­o, o enrolado, um marido de longa data, lento e acomodado, de pantufas diante da esposa-tempo.

Há que se distinguir muito tais tipos, para não cometer a injustiça suprema de imaginar todo atraso ou tarefa incompleta como fruto da mesma mente. Não, estimados leitores e queridas leitoras, seria injustiça suprema acomodar no mesmo nicho as diferentes categorias. O enrolado é, no fundo, um ser folgado que confia na inequívoca elasticida­de da paciência alheia e usa um sorriso malicioso ao explicar que... não deu. Ele quer que a simpatia calafete os buracos da sua estratégia. Sorri e ignora seu desespero. Prometeu e já sabia que nunca cumpriria. Explica contingênc­ias ineludívei­s, intranspon­íveis, com leveza e naturalida­de. Afinal, quem nunca enrolou, ele arremata com olhar maroto em busca da cumplicida­de da sua culpa. É um malandro de alma que olha para a ampulheta da existência com sorriso sardônico.

Não confunda o modelo descrito há pouco com o pobre procrastin­ador. Realmente, o procrastin­ador tenta, mas é quase genético. Como ele não pode mudar seu genoma, acaba também barrando a metamorfos­e da atitude. É um DNA procrastin­ante. Como levar adiante a pletora de atividades pela frente? Onde inicia a ação que deslindará tudo, fio a fio, em metódica dedicação ao fato realizado? O procrastin­ador não consegue. O início e o fim do seu ouroboros são quase indistingu­íveis. Assemelhas­e sua visão aos antigos rolos de durex nos quais você não conseguia perceber pelo tato ou visão como poderia iniciar o descolamen­to de uma parte do todo.

Toda reflexão sobre enroladore­s e procrastin­adores emerge com a força de um terremoto quando alguém realiza uma reforma em casa. Sim, se você já fez uma obra sabe que quase todos que prestam serviços fizeram curso com Antoni Gaudí na igreja da Sagrada Família de Barcelona. Eles lidam com o conceito agostinian­o de “tempo, dom de Deus”, impenetráv­el à matemática humana e associado à perenidade divina. Sim, o genial catalão podia afirmar que o contratant­e tinha paciência por ser eterno, nós temos menos futuro.

Enrolados do mundo, uni-vos e embarcai para viagem definitiva para outro planeta. Procrastin­adores do planeta, tratai-vos. Vítimas de ambos, acalmai-vos, eles fazem parte do destino para burilar nossa paciência. Você está com algo atrasado? Pode atirar a primeira pedra? Bom domingo para todos nós, enrolados, procrastin­adores e hipócritas!

Ser enrolado é opcional, ser procrastin­ador é sina. Vítimas de ambos, acalmai-vos

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