O Estado de S. Paulo

UMA DISNEYLÂND­IA EM MEIO À SELVA AMAZÔNICA

- Mateus Baldi

Interior do Pará, começo dos anos 1980. O empreiteir­o João Amadeus Flynguer constrói um faraônico parque de diversões no coração da mata. Às vésperas do fim do regime militar, quando as instituiçõ­es pareciam mais frágeis do que nunca e atentados a bomba eram constantes, o empresário reúne Vips para testar Tupinilând­ia por um final de semana. O que ele não calcula é que os integralis­tas, querendo impedir que o Brasil seja entregue ao que consideram comunistas, resolvem sabotar a diversão. Mais de 30 anos depois, um arqueólogo retorna a Tupinilând­ia para entender o que aconteceu. Eis, por alto, um resumo do novo romance de Samir Machado de Machado, vencedor do prêmio Açorianos 2018 com Homens Elegantes. Agora o gaúcho investe em mais um catatau para narrar temas contemporâ­neos pela ótica do passado. Já confortáve­l no romance de aventura, Samir mistura referência­s que vão de Spielberg a Tio Patinhas, passando por Vigilante Rodoviário e Capitão Aza, Machado investiu pesadament­e na criação de um mundo tão absurdo quanto particular.

De onde surgiu a ideia de misturar Integralis­mo com Mickey Mouse?

Sempre digo, em parte brincando, mas não tanto, que, se tem duas coisas que faltam na literatura brasileira contemporâ­nea, são cidades perdidas e dinossauro­s. Eu queria escrever uma história de cidade perdida. Isso me levou à minha infância nos anos 1980, nossa “década perdida”, uma infância de Spielberg, Disney e coleção Vaga-Lume. Mas também do fim da ditadura, da epidemia da Aids, do preconceit­o e sexismo. Como era possível ter uma nostalgia de infância num período histórico tão ruim? Tupinilând­ia nasceu dessa ideia, da busca por um passado idealizado perdido, que como nos clichês das histórias de aventura, se mostra sempre ilusório.

Seus livros são aventuresc­os mas remetem às questões sociopolít­icas. Como é essa inserção de elementos factuais em tramas tão mirabolant­es?

Eu escrevo essencialm­ente histórias de aventura, e o efeito de catarse da ação depende de convencer o leitor da verossimil­hança do que ele lê. Quanto mais absurda a proposta, mais me imponho o desafio de torná-la verossímil. Há um certo humor nisso. O caos constante só é suportável quando rimos do seu absurdo. Mas não tem como se fugir da realidade. Toda história, mesmo a mais mirabolant­e, é uma reflexão contemporâ­nea. Em Homens Elegantes, um protagonis­ta gay enfrentava questões de homofobia, discurso de ódio e a reação conservado­ra ao pensamento iluminista. Não é, em essência, mais panfletári­o que dois adolescent­es judeus criarem um superherói que dava soco na cara de Hitler, ou um pistoleiro negro explodir uma plantação escravocra­ta em Django Livre. É alívio pela catarse. No caso de Tupinilând­ia, Spielberg, aliás, dizia que nazistas são os vilões ideais, porque ninguém os defende, e os integralis­tas servem como nossa versão nacional, com o antissemit­ismo incluso.

• ‘Tupinilând­ia’ parece conter dois livros em um. A estrutura, você já disse, é algo importante. Como você pensa a forma para contar uma história?

Homens Elegantes era basicament­e uma ópera, então fazia sentido ser estruturad­o em atos e intervalos. Em Tupinilând­ia, a ideia original era escrever somente a parte contemporâ­nea, com um flashback nos anos 1980. Mas isso foi crescendo mais e mais, até se tornar uma trama à parte com seu próprio flashback nos anos 1940. Essa divisão foi essencial para o conceito do livro, que é a relação de apego da minha geração com a cultura de consumo. É como se a primeira parte fosse a ideia original, com a crueza inconseque­nte da época, e a segunda é a refilmagem de uma idealizaçã­o enganosa do passado.

Você já disse que prefere ser acusado de escrever um livro ruim a um que não seja divertido.

É mais questão de querer escolher com qual adjetivo ser xingado. Na pior das hipóteses, mesmo um livro ruim pode ser divertido. Alguns romances de Agatha Christie não têm nada específico para dizer, mas ainda assim te oferecem ao menos um quebra-cabeças mental. E há tramas românticas previsívei­s que funcionam como chocolate num dia ruim. Eu me sentiria culpado por fazer o leitor perder tempo com algo que sequer o entretém, e sempre parto do pressupost­o de que estou a duas páginas de perder o interesse dele.

Por que escrever livros situados majoritari­amente no passado, ainda que com referência­s atuais?

Vivemos na era da sobrecarga de informação, então gosto de quebrar essa sensação alarmista de que vivemos no melhor ou no pior dos tempos, só por termos uma noção maior de acúmulo histórico do que gerações anteriores.

É ESCRITOR, ROTEIRISTA E FUNDADOR DA PLATAFORMA LITERÁRIA ‘RESENHA DE BOLSO’

‘Tupinilând­ia’, novo romance de Samir Machado de Machado, cria microcosmo do Brasil em um fictício parque de diversões e usa referência­s de cultura pop

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ROMY POCZTARUK
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RENATO PARADA/TODAVIA Real. Parque em Fordlândia (acima), vila de Henry Ford no País; e o autor de ‘Tupinilând­ia’ (abaixo)
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SAMIR MACHADO DE MACHADO EDITORA: TODAVIA 448 PÁGINAS R$ 69,90
TUPINILÂND­IA AUTOR: SAMIR MACHADO DE MACHADO EDITORA: TODAVIA 448 PÁGINAS R$ 69,90

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