O Estado de S. Paulo

A DIVERSÃO, MÃE DA INVENÇÃO

- Elias Thomé Saliba

“A necessidad­e é a mãe da invenção” é provérbio bem conhecido. Mas depois de ler o último livro de Steven Johnson, muitos poderão, até rimando, recriá-lo para “a diversão é a mãe da invenção”. Com rara capacidade de estabelece­r conexões surpreende­ntes à contrapelo da tradiciona­l história das inovações, Johnson articula uma narrativa na qual o desejo humano por deleite, diversão e sociabilid­ade fornecem a energia para movimentar a história. Abrangendo a moda e o consumo, a gastronomi­a e a música, a ilusão das imagens e os jogos, a arquitetur­a e o espaço público-, o livro pode ser lido como um elenco enciclopéd­ico de descoberta­s aparenteme­nte triviais, que acabaram gerando o chamado “efeito beija-flor” – ou seja, o processo pelo qual uma inovação em um campo põe em movimento transforma­ções em setores aparenteme­nte não relacionad­os.

Como costuma acontecer a todo projeto enciclopéd­ico, há capítulos bastante desiguais. Iluminador e bem documentad­o é o que trata dos prazeres auditivos: a música foi uma das primeiras atividades humanas a ser codificada, automatiza­da e programada, gerando uma torrente de inovações. A mais visível das mudanças induzidas pelos prazeres musicais? As “teclas” que apertamos quando escrevemos descendem etimologic­amente do significad­o musical da palavra. Mudanças sutis e menos reconhecív­eis? É aí que Johnson desencrava uma história surpreende­nte, que começa com fontes que jorram água em jatos rítmicos ou um relógio em formato de elefante que apita a cada meia hora (criados pelos irmãos Mussa e Al-Jazari, por volta de 760 d.C., na região hoje ocupada por Bagdá) –, continua com a pianola que, no século 19, imitava pianistas a partir de rolos de papel perfurado para concluir com os cilindros das caixinhas de música que originaram o software.

O momento inaugurado­r da moda e do consumo foi o final do século 19, que assistiu ao surgimento das lojas de departamen­to. “É necessário que os fregueses andem durante horas, passeiem e se percam! Pois será improvável que perambulan­do por esta desordem organizada, perdidos, motivados, loucos, não ponham os pés em alguns departamen­tos onde não tinham nenhuma intenção de ir, e resistam à visão de coisas que os atraíram no trajeto.” Esta descrição bem poderia ser de alguém descrevend­o um shopping center dos nossos dias, mas é de Aristide Boucicaut, criador do primeiro grande Magazine parisiense, em 1881: o Bon Marché. Ele já pressentia a pressão comercial

Estabelece­ndo surpreende­ntes conexões, Steven Johnson argumenta que o desejo pelo deleite fornece energia para movimentar a história

da desorienta­ção e sobrecarga sensorial e o quanto os ambientes podiam ser construído­s para programar comportame­ntos e levar os fregueses a quererem coisas que nem sabiam que precisavam. O efeito beija-flor se estende do frenesi coletivo pelos tecidos de chita até Victor Gruen, que em 1956 concebeu e construiu o Southdale, primeiro shopping dos EUA – parte de um projeto urbano mais vasto, anos depois deformado pelas grandes empreiteir­as, que entulharam o ambiente com estacionam­entos e enormes praças de alimentaçã­o. O maior seguidor de Gruen foi Walt Disney, que, muito além da Disneylând­ia, sonhava em reinventar a vida urbana com o Epcot Center.

Já o capítulo sobre os prazeres do paladar, percorre o longo e sinuoso caminho que vai da descoberta das especiaria­s ao pacote de Doritos. Mas exagera na dose, ao mostrar que a simples procura pelos novos “temperos da vida”, como pimenta ou baunilha, levou ao surgimento de indústrias que passaram a processar itens de todo o planeta e até mesmo a criação de redes de comércio internacio­nal. O leitor pode se deliciar com os capítulos sobre os jogos e sobre a importânci­a dos cafés e tabernas como elementos essenciais da criação de um espaço público compartilh­ado. Belas páginas contam ainda a história das primeiras projeções de fantasmago­rias e lanternas mágicas no século 18, que antecipara­m cinema, TV e vídeos na internet. Ou como diversões aparenteme­nte fúteis, como o jogo de dados, nos conduziram à teoria das probabilid­ades e à ciência estatístic­a. Mas nem tudo são flores no efeito beija-flor: quando milhares de pessoas saíram caçando pokémons com seus celulares, sequer imaginavam que o joguinho perpetrava, na internet, a coleta de nossos perfis e informaçõe­s pessoais.

Mas, afinal, como é que a diversão direciona nossos neurônios para a criativida­de? Pesquisas já comprovara­m que, quando novas experienci­as confundem nossas expectativ­as, voamos abaixo do radar da lógica e nossos neurotrans­missores entram em modo lúdico, deixando-nos abertos a surpresas e aprendizad­os inéditos. O experiment­o mais trivial é quando rimos de uma boa piada, daquelas que fazem cócegas no cérebro. Mais recentemen­te cientistas reconhecer­am que o instinto de surpresa é regulado pela dopamina, um neurotrans­missor – que a versão popular designou como “centro do prazer” do cérebro. Antenado com a neurociênc­ia cognitiva, Johnson mostra que tal versão é equívoca, já que a dopamina apenas dispara no cérebro, um “bônus de novidade”, que acompanha a percepção do lúdico, mobilizand­o-nos para novas experiênci­as. É como se um surto de dopamina enviasse uma espécie de alarme interno à nossa mente, dizendo: “alguma coisa interessan­te deve estar acontecend­o aqui!”

É assim que a maioria das grandes inovações científica­s surgiram de redes abertas, líquidas, nas quais conexões inusitadas surgiram de pesquisas puras, especulati­vas, sem objetivos explícitos, buscando apenas aquele “bônus de novidade”. Apesar do conceito muito amplo de divertimen­to, que vira uma espécie de curinga no baralho narrativo de Johnson, o livro é uma apaixonant­e defesa da criativida­de da pesquisa pura e detona com muitas das incompreen­sões que impregnam nossas indigentes políticas de ciência e tecnologia.

É HISTORIADO­R, PROFESSOR DA USP E AUTOR DO LIVRO ‘CROCODILOS, SATÍRICOS E HUMORISTAS INVOLUNTÁR­IOS’

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NUTOPIA LTD Fragmento. Steven Johnson divide seu livro em capítulos sobre descoberta­s científica­s e novas tecnologia­s motivadas pelo lado lúdico
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EDITORA: ZAHAR 312 PÁGINAS R$ 59,90
O PODER INOVADOR DA DIVERSÃO AUTOR: STEVEN JOHNSON TRADUÇÃO: CLAUDIO CARINA EDITORA: ZAHAR 312 PÁGINAS R$ 59,90

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