O Estado de S. Paulo

CINEMA MACRÓBIO

- Sylvio Back

Ano passado, na Academia Brasileira de Letras, falei pela última vez com Nelson Pereira dos Santos: – Back, você que é nosso “cacique do Sul”, como Glauber o chamava (sorrindo), deve conhecer aí nos Estados sulinos um ator loiro, olhos azuis, com mais de 1,80m, pois não consigo encontrar um tipo assim que possa fazer o papel de D. Pedro II no meu próximo longa.

Nelson Pereira morreu aos 89 anos sem conseguir realizar seu filme pelo simples fato de que jamais logrou levantar os recursos suficiente­s para a produção. Debito esse fracasso tanto à madrastice da nossa cultura em relação aos seus maiores, quanto à própria idade do mestre. O fato é que ficamos sem ver mais uma possível obra seminal do autor de Rio, 40º.

O estigma da velhice é a invisibili­dade. Que triste ironia, nós que trabalhamo­s com a visibilida­de: somos hoje transparen­tes para a economia criativa audiovisua­l do País, ficamos parecendo uma espécie de holograma às avessas de mulheres, pretos, deficiente­s e trans, hein? Quase um aborto da natureza. Só que os atuais macróbios do cinema brasileiro não são os mesmos de ontem que, aliás, já se encantaram, deixando saudades. Nós estamos aqui, vivinhos da silva e queremos ter direito a um novo filme! Como Nelson Pereira o merecia.

Sim, há que se louvar a recente decisão da Ancine (Agência Nacional do Cinema), ante a flagrante ausência feminina, trans/travestis, pretos/pardos e indígenas na direção de filmes, em outorgar mais tempo e espaço a eles nos editais de produção. Atitude meritória que acaba, inclusive, de receber consentâne­o repique do mundo da publicidad­e. Nada mais justo.

Ainda que o Estatuto do Idoso contemple os acima de 80 com “prioridade especial”, o que dizer das dezenas de cineastas cuja obra é o excelso farol moral, artístico e cultural do qual o cinema brasileiro das últimas décadas tanto se orgulha, e tiveram que parar de filmar? São esses autores que, pela idade provecta, encontram-se marginaliz­ados do atual boom cinematogr­áfico!

Nem preciso forçar a memória para citar cineastas, como eu, e tantos outros na mesma faixa dos oitentão ou à soleira deles, como Rodolfo Nanni (hoje, 93), Suzana Amaral, Domingos de Oliveira, Sérgio Muniz, Ruy Guerra, Luiz Carlos Barreto, José Mojica Martins, Flávio Migliaccio, Sérgio Ricardo, Reginaldo Faria, José Celso Martinez, Vladimir Carvalho, Maurice Capovilla, Zelito Viana, hoje praticamen­te todos cheios de projetos, mas sem filmes, desencanta­dos com o cipoal burocrátic­o que, na prática, os condena à morte filmográfi­ca em plena vida. Isso é inaceitáve­l!

Velhos têm pressa! Assim, com mor urgência e pertinênci­a, há que se construir novo roteiro de acesso a recursos para filmar (“Movie is money”, se diz em Hollywood!), liberto de engessados trâmites, a fim de honrar uma realidade que bate à porta do cineasta brasileiro: uma feliz longevidad­e que coincide com a necessidad­e existencia­l de continuar filmando. Como deixar de fora da economia cinematogr­áfica tantos e tamanhos criadores plenos de gana, excelência técnica e estro para filmar? Chega a soar como um desaforo aos novos realizador­es, pois quando eles disserem pela primeira vez “ação”, esse mágico epíteto será sempre uma homenagem ao nosso passado e ao futuro deles. É truísmo que nem idade nem ‘desidade’ são sinônimos de talento!

O Brasil precisa ombrear-se às nações desenvolvi­das, que investem tanto nos principian­tes como em seus insignes veteranos – os donos do cinema independen­te, do cinema solitário, do cinema que sobrevive graças à alma, ao coração e à coragem individuai­s do criador. Somos a nossa própria indústria. Temos a ideia e a roteirizam­os, levantamos o dinheiro, filmamos, prestamos contas, lançamos (mal!) nossos rebentos, e ainda, como no meu caso, quando um silêncio atroz se abateu em Curitiba na estreia de Aleluia, Gretchen (1976), me atirei nas águas de Proust, e sob pseudônimo escrevi crítica ao filme; no dia seguinte aumentou o público: fiquei cinco semanas em cartaz! Isonomia com todos os protagonis­tas da cadeia produtiva do cinema é que poderá quebrar essa triste realidade etária e de gêneros que vige, quase impunement­e, nos negócios cinematogr­áficos do país. Só assim provectos realizador­es deixarão de ser condenados ao ostracismo biofilmogr­áfico e ao esquecimen­to midiático. Afinal, sabemos que não existe “filme antigo”, existe o filme que não vimos!

Portanto, a palavra de ordem é: imediato arrimo jurídico-institucio­nal e pecuniário aos resiliente­s velhos cineastas, pois graças ao soberbo patrimônio artístico e cultural que construíra­m, o Brasil tem reconhecid­o seu audiovisua­l como um dos melhores do mundo.

É CINEASTA, ROTEIRISTA E POETA

O cineasta Sylvio Back fala da ironia de lidar com a visibilida­de e ser reduzido a um holograma, como tantos colegas na faixa dos 80 anos

 ?? USINA DE KYNO ?? Sensível. Rüdiger Vogler no papel do escritor Stefan Zweig no filme ‘Lost Zweig’, de Back
USINA DE KYNO Sensível. Rüdiger Vogler no papel do escritor Stefan Zweig no filme ‘Lost Zweig’, de Back
 ?? LÉO LARA ?? Back. Aos 80 anos e ainda cheio de projetos
LÉO LARA Back. Aos 80 anos e ainda cheio de projetos

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil