O Estado de S. Paulo

OS TRAUMAS DE LYNCH

- The Economist

David Lynch se aventurou recentemen­te na música lançando dois discos Numa noite dos anos 1950, David Lynch e seu irmão vagavam pelas ruas silenciosa­s e mal iluminadas de Boise, Idaho, quando encontrara­m uma mulher nua, que caminhava tropegamen­te. “Talvez fosse a iluminação, ou o modo como ela saiu da escuridão, mas sua pele era branca como leite e sua boca, escandalos­amente vermelha”, lembra-se Lynch. Ele quis ajudar a mulher, mas não sabia o que fazer ou dizer. “Ela estava assustada e havia apanhado, mas mesmo traumatiza­da era linda.”

Fãs de Lynch vão se lembrar de uma cena perturbado­ra como essa em Veludo Azul, filme de 1986, estrelado por Isabella Rosselini. O filme é o quarto do diretor e o consagrou como um autor de “surrealism­o mulher-em-dificuldad­e”. Enquanto críticos continuam lutando para interpreta­r a idiossincr­ática obra de Lynch, um livro, Room to Dream, uma história de sua vida, mostra que muitos de seus temas derivam da infância – ideias e imagens ocultas em sombras que Lynch preencheu com imaginação e medo.

Room to Dream é uma ferramenta inusual. Seus capítulos se alternam entre uma biografia de autoria de Kristine McKenna e as próprias memórias de Lynch. Mckenna fala de fatos que marcaram a vida do diretor: a mudança para a Virgínia para fazer o segundo grau e se tornar pintor; seus primeiros filmes experiment­ais, feitos em Filadélfia, entre eles o aterroriza­nte curta The Grandmothe­r; sua aceitação pelo Instituto Americano de Cinema, onde estudou ao lado de Terrence Malick e Paul Schrader e partiu para seu primeiro longa, Eraserhead (1977).

Amigos de Lynch disseram a McKenna que ele combina uma natureza dócil com um fascínio pelo sombrio, pelo distorcido. Jack Fisk, que se tornaria designer de produção de Lynch, lembra-se de quando uma mariposa ficou grudada na tinta ainda fresca de um de seus quadros e se debatia para não morrer. “Ele ficou vidrado naquela cena – a morte lutando com a pintura”, disse Fisk. De outra vez, Lynch pediu a Raffaella de Laurentis, produtora de filmes, que lhe desse o útero retirado numa histerecto­mia.

Mas o humor e as excêntrica­s reminiscên­cias e observaçõe­s de Lynch são a parte mais prazerosa do livro. Ele é reticente, meio antiquado ao falar de sua vida amorosa (foi casado quatro vezes), mas diz que gosta “do tipo bibliotecá­ria... cuja aparência oculta, chamas interiores”. Em sexo, só “chegou lá” aos 18 anos. De uma garota católica do secundário, ele conta: “Acho que fizemos mais nos primeiros encontros que quando o namoro avançou, porque ela continuou indo às aulas de catecismo e descobrind­o cada vez mais coisas proibidas”. Alguns personagen­s de sua vida poderiam bem ser personagen­s de seus filmes – como um seu conhecido que “tinha cabeça de barril, barba imensa, torso de gigante e pernas de criança de 3 anos”.

Lynch tem certa uma afinidade com o espiritual, numerologi­a, teorias da conspiraçã­o e destino. Ele acha que Lyndon Johnson estava por trás do assassinat­o de Kennedy. Acredita ser possível viajar para o futuro, “embora não seja fácil”. Cenas de seus filmes chegam a ele em sonhos. É adepto da meditação transcende­ntal e crê em carma: “Uma lei da natureza diz que você colhe o que semeou, e assim coisas de vidas anteriores voltam para visitá-lo na vida atual”.

Peculiarid­ades de Lynch dão pistas aos fãs para entender sua arte. Laura Palmer, de Twin Peaks, sua obra-prima para a televisão, parece ser sua mulher problemáti­ca favorita, ao lado talvez de Marilyn Monroe, cuja história ele diz que gostaria de ter contado em filme. Segundo ele, Marilyn foi assassinad­a pela família Kennedy (o livro está cheio de mortes suspeitas, tanto de famosos quanto de obscuros).

O convite à atriz Isabella Rossellini para atuar em Veludo Azul não se deveu apenas a sua beleza: ao olhar em seus olhos, Lynch percebeu que “ali havia medo”, o que a tornava a escolha certa para aquele papel.

David Lynch transporta para sua tela fantástica as mesmas visões sombrias que tinha quando garoto. Como diz em um trecho de Room to Dream, “você é basicament­e o que foi desde o início”. Adaptação de ‘Duna’, de Frank Herbert teve recepção mista

Em mistura de biografia com reunião das memórias do diretor de ‘Twin Peaks’, o livro ‘Room to Dream’ desvenda seus filmes por meio de sua vida

A atriz Laurel Near inaugurou seu estilo de personagem

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SACRED BONES RECORDS Versatilid­ade.
 ?? UNIVERSAL HOME VIDEO ?? Sombrio. Cena do excêntrico ‘O Homem Elefante’, lançado em 1980
UNIVERSAL HOME VIDEO Sombrio. Cena do excêntrico ‘O Homem Elefante’, lançado em 1980
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20TH CENTURY FOX HOME ENTERTAINM­ENT Olhar. Isabella Rossellini atuou em ‘Veludo Azul’ por mostrar medo
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FLASHSTAR HOME VIDEO Sci-fi.
 ?? ABC ?? TV. ‘Twin Peaks’ retornou elogiada pela ‘Cahiers du Cinema’ em 2017
ABC TV. ‘Twin Peaks’ retornou elogiada pela ‘Cahiers du Cinema’ em 2017
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LUME FILMES ‘Eraserhead’.

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