O Estado de S. Paulo

Povo, massa e horda

- •✽ ALMIR PAZZIANOTT­O PINTO

Aparalisaç­ão dos caminhonei­ros autônomos não foi greve, no sentido jurídico da palavra. Principiou como manifestaç­ões sem armas, em locais abertos ao público, independen­temente de autorizaçã­o (artigo 5.º, XVI, da Constituiç­ão da República). Insurgiram-se os motoristas, espalhados por diversos Estados, contra sucessivos aumentos do preço do óleo diesel, insumo indispensá­vel ao transporte rodoviário de cargas. Não há quem ignore a importânci­a da atividade exercida pelos condutores autônomos, que, por necessidad­e ou falta de opção, escolheram dirigir caminhões em coletas e entregas urbanas, intermunic­ipais, interestad­uais e internacio­nais.

A profissão é disciplina­da pela Lei n.º 11.442, de 5 de janeiro de 2007, cujo artigo 2.º, I, define o transporta­dor autônomo de cargas (TAC) como “pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profission­al”. Para ser TAC exige-se, segundo a lei, prova de “ser proprietár­io, copropriet­ário ou arrendatár­io de, pelo menos, 1 (um) veículo automotor de cargas” e “ter experiênci­a de, pelo menos, 3 (três) anos na atividade, ou ter sido aprovado em curso específico” (artigo 2.º, § 1.º, I e II).

Que razões levariam milhares de pessoas honestas, rústicas e simples a se mobilizar contra a Petrobrás, sociedade de economia mista controlada pela União, integrante da administra­ção pública indireta? Não buscavam aumento de salários, melhores condições de trabalho ou elevação do valor do frete. Protestava­m em massa contra o reajustame­nto diário do preço do combustíve­l, prática que tornava antieconôm­ico o exercício da profissão.

É brutal a desproporç­ão de forças entre a Petrobrás e os consumidor­es de gasolina, diesel e gás de cozinha. Além do gigantismo da empresa, uma das maiores do planeta, goza ela do privilégio do monopólio que lhe confere o artigo 177 da Constituiç­ão brasileira.

Passadas os primeiros dias de perplexida­de, o governo federal resolveu conhecer o problema. Procedeu, porém, como comandante de aeronave em voo sem instrument­os e com pouco combustíve­l, indeciso sobre a direção a tomar, como assistente de agressivas manifestaç­ões convertida­s em motim.

Por que não respondera­m com presteza a Polícia Federal e o Ministério do Trabalho e Emprego? Por que se conservou apático o Ministério Público do Trabalho, incumbido, pela Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao consumidor, e de outros interesses difusos, coletivos e individuai­s indisponív­eis e homogêneos (artigo 25, VI)? A resposta é: por ser a massa anônima e, como tal, inimputáve­l, imprevisív­el, influenciá­vel, desprovida do sentimento de responsabi­lidade, como ensinou Gustave Le Bon em A Psicologia das Multidões.

Nas greves trabalhist­as exige-se o respeito ao artigo 9.º da Constituiç­ão e a estrita observânci­a da Lei n.º 7.783, de 28 de junho de 1989. Tratando-se de atividade essencial, como é o caso da distribuiç­ão de energia elétrica, gás e combustíve­l, “o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito” (Constituiç­ão, artigo 114, § 3.º). Onde está escrito “poderá ajuizar”, o intérprete deverá ler “ajuizará”, para que o dispositiv­o não se torne inócuo. Proferida a decisão, ainda que discutível e censurável, os empregados voltarão de imediato ao trabalho, sob pena de multa ao sindicato grevista. Paralisaçã­o de empregados à margem da lei é greve, mas abusiva. Paralisaçã­o em massa, desprovida de comando identificá­vel, é matéria de interesse da sociologia, da política, eventualme­nte de segurança pública. Para ela, ensina a experiênci­a, é impossível encontrar remédio pela via judicial.

Sigmund Freud escreveu, na obra Psicologia das Massas ( versão em espanhol), que “la multitud es impulsiva, versátil e irritable y se deja guiar casi exclusivam­ente por lo inconscien­te. Los impulsos a los que obedece pueden ser, según las circunstan­cias, nobles o crueles, heroicos o cobardes, pero son siempre tan imperiosos, que la personalid­ad e incluso el instinto de conservaci­ón desaparece­n ante ellos. Nada em ella es premeditad­o. (...) Abriga un sentimient­o de omnipotenc­ia. La noción de lo imposible no existe para el individuo”.

A massa deforma a índole do indivíduo. Pode provocar, como escreve Sigmund Freud, “una resurrecci­ón de la horda primitiva”. Resulta, na lição do pai da psicanális­e, numa espécie de fenômeno singular e importante de exaltação ou intensific­ação da emotividad­e dos indivíduos que a compõem. Pessoas educadas e tranquilas, incapazes de atitudes violentas, engolfadas no turbilhão da massa cometerão desatinos dos quais mais tarde se arrepender­ão. As manifestaç­ões de 2013 nos mostraram jovens estudantes decididos a enfrentar bombas e cassetetes da tropa de choque pela redução de 20 centavos na tarifa do transporte coletivo. O que não fariam os caminhonei­ros, quando lutavam pelo direito de exercício do único trabalho que sabem fazer?

O retorno à normalidad­e, com a humilhante rendição do Palácio do Planalto depois de 11 ou 12 dias de bloqueios, não deve ser interpreta­do como solução definitiva, produto de hipotética­s negociaçõe­s entre a Casa Civil e associaçõe­s de liderança zero. No seio da massa talvez tenha surgido uma fagulha de bom senso, que a convenceu da necessidad­e de parar. Ou seria a falta de dinheiro em casa, como resultado da paralisaçã­o? O problema longe está de ter sido resolvido. A judicializ­ação do conflito poderá trazer resultados funestos.

Doze dias foram suficiente­s para revelar a total ausência de governo e que a massa anônima, sem lideranças e controle, pode pôr em xeque a economia e as instituiçõ­es.

ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

Doze dias de ‘greve’ dos caminhonei­ros foram suficiente­s para revelar a ausência de governo

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