O Estado de S. Paulo

O menino do subúrbio

Nascido na periferia de Paris, Mbappé rouba a cena na equipe francesa e chega badalado às quartas

- Gonçalo Junior ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU

Da periferia de Paris, Mbappé aponta o caminho para o futebol francês.

A palavra francesa banlieue significa subúrbio, periferia. Na maioria das vezes, concentra famílias de baixa renda, como os bairros de Clichy-sous Bois e Bondy. Séculos atrás, o termo significav­a “lugar proibido”: era para lá que nobres enviavam criminosos e mendigos. A partir dos anos 1970, a palavra ganhou um novo significad­o.

Hoje, ele representa os bairros populares para famílias de baixa renda. São locais que “acolheram” a onda de imigrantes que chegou ao país após a independên­cia das ex-colônias africanas nos anos 1960. Kylian Mbappé, a nova joia francesa, nasceu em Bondy, nos banlieues de Paris. É esse o mundo que ele representa na Copa da Rússia.

Os indicadore­s sociais de onde ele nasceu ficam à sombra da Cidade Luz. No fim de 2017, o índice de desemprego era de 11,4%. Entre os jovens, a taxa era maior: 23%. A repressão policial, outro problema, dificilmen­te aparece nas estatístic­as. Foi esse caldo que alimentou os protestos violentos de 2005.

Cidadãos franceses descendent­es de africanos e árabes, junto com jovens brancos, incendiara­m carros e enfrentara­m a polícia por mais de duas semanas. Os tumultos começaram no subúrbio de Paris, quando dois jovens morreram aparenteme­nte ao fugir da polícia. Logo, eles se transforma­ram em uma manifestaç­ão contra o racismo, a repressão policial e as escassas oportunida­des de emprego para os imigrantes. Cidade partida. Paris dividida.

Na época dos protestos, Mbappé tinha seis anos. Os pais cuidaram para que ele não soubesse direito o que estava acontecend­o. O esporte foi a válvula de escape que encontrara­m. Seu pai, Wilfried Mbappé, era o diretor do time local de futebol; sua mãe jogou handebol.

Com 11 anos, ele já era considerad­o um fenômeno. As paredes do quarto eram forradas de fotos do ídolo Cristiano Ronaldo. Ele foi a Londres e passou um período de experiênci­a no Chelsea. Não deu certo. Frustração. Quando voltou, assinou contrato com o Monaco e começou a ultrapassa­r os muros invisíveis que separam o centro de Paris da periferia. Destaque das categorias de base, Mbappé foi o jogador mais jovem a estrear pelo profission­al, aos 16 anos. Também foi o mais jovem a marcar gol no campeonato francês, com 17 anos e 62 dias, desbancand­o o ex-atacante Thierry Henry, outro de seus ídolos.

Hoje, ele mudou de casa, mas sua lenda – sim, ele já é uma lenda – permanece. Existe um mural gigantesco em um dos prédios centrais com a pintura do novo astro e a frase: “Bondy, cidade das possibilid­ades”. É uma visão otimista e açucarada do sofrido subúrbio parisiense.

Com os dois gols que fez na Argentina de Messi, Mbappé se tornou aos 19 anos o jogador mais jovem a marcar duas vezes na fase de mata-mata desde Pelé, que também fez dois aos 17 anos na Copa de 1958. “Fico feliz, mas Pelé está em outra categoria”, disse o menino de 19 anos, sempre sorridente.

Fonte. Mbappé não é o único representa­nte da periferia na seleção francesa. Pelo contrário. Os banlieues parisiense­s são uma fonte de talentos. Dos 23 jogadores convocados por Didier Deschamps, oito começaram suas histórias nas regiões de imigrantes. A descrição da história de Mbappé vale para Pogba, Kanté, Mendy e Matuidi – só para citar os titulares.

Entre os reservas estão Areola, Kimpembe e Nzonzi. Naturalmen­te mudam os nomes dos bairros, mas a matriz é a mesma. Paul Pogba, por exemplo, cresceu em Lagny-Sur-Marne.

Depois de serem garimpados nas quadras de cimento com pintura descascada, centenas vão para a Clairefont­aine, o centro de treinament­o nacional. Aí começam a pular o muro.

Esses meninos da periferia trazem um estilo de jogo diferencia­do, baseado na velocidade, no drible, na habilidade para resolver as jogadas em pequenos espaços e no raciocínio rápido. É do improviso e da criativida­de. Esses locais são a versão francesa dos campinhos de terra que são cada vez mais raros no Brasil. Futebol de raiz. As idades e as cores se misturam nos jogos. Mbappé tirou Messi da Copa e aponta um caminho para o futuro do futebol francês. E ele começa atrás do muro.

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FRANCK FIFE/AFP Talento. Aos 16 anos, Mbappé estreou como profission­al

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