O Estado de S. Paulo

O conceito jurídico de ‘civismo’

- FÁBIO ULHOA COELHO

Os museus, além de exibirem seus acervos, sempre organizara­m exposições temporária­s, com obras emprestada­s de outros museus. Cada um tem seus destaques, mas também suas lacunas, ocasionalm­ente preenchida­s pelo salutar intercâmbi­o internacio­nal dessas instituiçõ­es.

Uma das funções das exibições temporária­s é oferecer aos visitantes a oportunida­de de conhecerem importante­s obras de arte pertencent­es a museus de todo o mundo. E, tendo cada uma o seu tema (centrado no artista, num movimento artístico, etc.), a exposição temporária recontextu­aliza a obra emprestada, enriquecen­do sua significân­cia.

Alguns museus têm escolhido, para as suas exposições temporária­s, temas que possam despertar discussões do interesse da sociedade, para além do significad­o específico no universo próprio das artes. Exposições têm sido organizada­s em torno de eixos temáticos, como empoderame­nto feminino, infância, tolerância e outros. Com isso os museus de arte ganham um novo e desafiador papel na complexa sociedade dos nossos tempos: o de ambientar reflexões coletivas sobre assuntos relevantes, mais ou menos urgentes.

Em São Paulo, nossos mais importante­s museus de arte têm assumido esse novo papel de ambiente de discussão. Neste ano, por exemplo, a Pinacoteca trará para cá a Radical Women, com a produção de artistas latino-americanas de 1960 a 1985; o Masp e o Instituto Tomie Ohtake apresentam Histórias Afro-Atlânticas, pondo luz no legado artístico dos fluxos e refluxos ligados à migração compulsóri­a causada pelo nefasto negócio da escravizaç­ão.

Não há como negar que essas exposições temporária­s, com obras de museus estrangeir­os, têm imensuráve­l importânci­a cultural, principalm­ente para aqueles que não podem custear com frequência viagens internacio­nais. Uma insólita questão jurídica, porém, surgida recentemen­te, tem posto em risco a continuida­de de exposições temporária­s nos museus brasileiro­s: elas seriam “cívicas”?

A inusitada questão diz respeito à interpreta­ção da norma que estabelece o valor a ser pago pelo museu ao aeroporto em que aterrissa o avião trazendo do exterior as obras de arte emprestada­s. A concession­ária aeroportuá­ria presta serviços de armazenage­m e capatazia (movimentaç­ões internas), entre o desembarqu­e e a liberação alfandegár­ia das obras. Esses serviços devem ser, naturalmen­te, remunerado­s. Mas, a depender do preço cobrado, vai se tornar impossível para os museus brasileiro­s continuare­m a receber obras emprestada­s de instituiçõ­es estrangeir­as.

O cálculo da tarifa era feito, até março deste ano, em função do peso do suporte material das obras de arte. Mas, desde então, as concession­árias aeroportuá­rias têm pretendido cobrar tarifa proporcion­al ao valor delas, que pode alcançar centenas de milhões de dólares.

É necessário discutir o conceito jurídico de “civismo” porque os aeroportos argumentam que a tarifação proporcion­al ao peso no caso de “admissão temporária” cabe apenas em evento “cívico-cultural”. Eles consideram “civismo” sinônimo de “patriotism­o”, sugerindo que a norma teria aplicação muito específica, limitada à admissão temporária de objetos destinados a eventos em que a Pátria é celebrada, como a Parada do Dia da Independên­cia.

Essa restrição no conceito de “civismo” é inteiramen­te equivocada. No mínimo, porque, não havendo notícia de internaliz­ações temporária­s visando à realização de eventos com celebração da Pátria, a enviesada interpreta­ção conduz à absurda situação de uma norma que nada disciplina.

“Civismo” é conceito jurídico referente à relevância pública caracterís­tica de certas ações de pessoas e instituiçõ­es. Inclui o patriotism­o, sem dúvida, mas tem abrangênci­a bem maior. É sinônimo de “cidadania”, ou seja, daquele espírito de desprendim­ento do indivíduo que vê importânci­a em contribuir para a realização de valores de ordem pública. Todas as iniciativa­s cujo objetivo principal for proporcion­ar um ganho coletivo têm caráter “cívico”; são manifestaç­ões de “civismo”, do espírito arquetípic­o de busca do bem comum.

Em relação à questão do lucro, cabe relembrar a assentada distinção feita pelo Direito Comercial entre a sua busca como um fim (atividade empresaria­l) ou como meio para a realização de finalidade­s não econômicas (culturais, filantrópi­cas, etc). O civismo encontra-se certamente na segunda hipótese, em que o objetivo principal da iniciativa não é dar lucro, servindo o ganho, quando existe, apenas de meio para tornar viável o evento, ou mesmo para a manutenção da instituiçã­o que o promove.

Em geral, são pessoas e instituiçõ­es que se dedicam a ações cívicas. Mas nada impede que as empresas abracem causas de interesse público. Aliás, isso acontece com alguma frequência e de maneira nenhuma compromete o essencial intuito lucrativo delas. Mesmo sendo tais causas desvincula­das de qualquer celebração da Pátria, são mostras de desejável civismo empresaria­l. Se as concession­árias dos aeroportos, por exemplo, dessem isenção total aos museus de qualquer pagamento pelos serviços de armazenage­m e capatazia das obras emprestada­s, dariam uma reconhecid­a contribuiç­ão à realização do interesse coletivo, num gesto de inegável civismo.

A correta definição do conceito jurídico de “civismo” possibilit­ará o retorno à interpreta­ção anterior da norma. Pagar tarifa proporcion­al ao estratosfé­rico valor das obras emprestada­s torna as exposições temporária­s inviáveis, porque não se consegue repassar o seu custo aos ingressos. Por outro lado, as concession­árias não são prejudicad­as na cobrança da tarifa pelo peso. Afinal, é o suporte material da obra de arte que os aeroportos guardam e transporta­m, independen­temente do seu conteúdo artístico expressivo. Deste cuidam os museus.

Um gesto cívico seria as concession­árias isentarem museus dos custos aeroportuá­rios

JURISTA, PROFESSOR DA PUC-SP, É MEMBRO DO CONSELHO DELIBERATI­VO DO MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRI­AND (MASP) – MANDATO 2017-2020

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