O Estado de S. Paulo

A saudável normalidad­e da lei

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Delações têm produzido muitos escândalos. Urge agora um trabalho rigoroso que identifiqu­e o que tem lastro probatório e o que não tem.

Recentemen­te, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), proferiu decisão rara nos tempos atuais: mandou arquivar um inquérito que, apesar de sua longa duração, não havia produzido nenhum elemento probatório adicional. A Procurador­ia-Geral da República (PGR) e a Polícia Federal queriam uma nova prorrogaçã­o do prazo das investigaç­ões por mais 60 dias, mas o ministro Dias Toffoli fez cumprir a lei, que exige que a investigaç­ão criminal tenha tempo determinad­o.

Se o prazo se esgotou e não há novos elementos que justifique­m uma eventual prorrogaçã­o, o inquérito deve ser arquivado. As prorrogaçõ­es automática­s concedidas pela Justiça, como se tornou praxe nos últimos tempos, ferem a lei processual penal, bem como as garantias fundamenta­is do cidadão num Estado Democrátic­o de Direito.

Instaurado em abril de 2017 a pedido da PGR, o inquérito teve origem em delações relacionad­as à Odebrecht e investigav­a o deputado federal Bruno Araújo (PSDB-PE) pela suposta prática dos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e corrupção ativa. Segundo a PGR, um dos delatores mencionou que o Setor de Operações Estruturad­as do Grupo Odebrecht teria repassado um total de R$ 600 mil ao deputado Bruno Araújo nos anos de 2010 e 2012, a título de doação eleitoral não contabiliz­ada. Em contrapart­ida, o parlamenta­r teria agido em defesa dos interesses da empresa no Congresso Nacional.

Na decisão, o ministro Dias Toffoli lembrou que “a colaboraçã­o premiada, como meio de obtenção de prova, tem aptidão para autorizar a deflagraçã­o da investigaç­ão preliminar, visando adquirir coisas materiais, traços ou declaraçõe­s dotadas de força probatória”. No entanto, o relator do caso reconheceu que “o presente inquérito perdura por prazo significat­ivo (mais de 15 meses), com prorrogaçõ­es sucessivas, sem que tenham aportado nos autos elementos (...) de corroboraç­ão às declaraçõe­s dos colaborado­res ou provas outras”.

A PGR, apesar de ter pedido nova prorrogaçã­o, não requereu novas diligência­s investigat­ivas. Tem-se, assim, uma situação contraditó­ria. O Ministério Público reconhece que não há no inquérito provas capazes de sustentar uma denúncia. Se houvesse, apresentar­ia a denúncia, em vez de solicitar a prorrogaçã­o do inquérito. No entanto, o pedido de mais prazo para investigar não é justificad­o por nenhuma diligência específica que se pretenda fazer. O intuito é apenas manter o inquérito aberto por mais tempo.

O abuso está justamente nessa abertura indefinida dos inquéritos, submetendo os investigad­os a um ônus infundado e desproporc­ional. “Não se pode olvidar que continua a pesar sobre o investigad­o o ônus do inquérito, que não pode suportá-lo indefinida­mente, ao alvedrio da Polícia e do Ministério Público, mormente quando as investigaç­ões pouco ou nada avançam e, apesar de todos os esforços envidados nesse sentido, não se vislumbra justa causa a amparálas”, disse o ministro Dias Toffoli.

A exigência de que a investigaç­ão criminal tenha prazo certo não é brecha para a impunidade. Além de ser uma garantia fundamenta­l do cidadão contra eventuais abusos do Estado, o prazo deve servir de estímulo para que as autoridade­s sejam diligentes em suas tarefas investigat­ivas. Inquérito aberto que não avança não tem nenhuma utilidade para o combate à corrupção.

Ao prever prazo para inquérito, a lei processual impõe ao Estado o ônus de fundamenta­r seus pedidos de investigaç­ão, o que é uma garantia fundamenta­l para o cidadão. O poder público não pode investigar arbitraria­mente as pessoas. “A remota possibilid­ade de encontrar novos elementos de informação não justifica a manutenção do presente inquérito”, afirmou o ministro Dias Toffoli.

Delações têm produzido muitos escândalos. Urge agora um trabalho rigoroso que identifiqu­e o que tem lastro probatório e o que não tem. Inquéritos que não produziram provas, contendo apenas delações, devem ser arquivados. É muito prejudicia­l ao País que cidadãos adquiram notoriedad­e como reféns de suspeitas que não se comprovam. É hora de voltar à saudável normalidad­e: que todos estejam submetidos apenas à lei e não ao arbítrio de um delegado, de um promotor, de um juiz.

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