O Estado de S. Paulo

Verissimo

‘Disco perdido’ de Coltrane é precioso registro de uma trajetória inquieta e inovadora

- Alberto Bombig

Acho que a minha geração deu no que deu porque nunca usou roupa de veludo.

John Coltrane viveu relativame­nte pouco, mas produziu muito. Ao longo de seus 40 anos de vida, participou de uma centena de álbuns de jazz. Há gravações de Coltrane para os mais variados gostos, ao vivo e em estúdio, e com os mais ecléticos parceiros. Ainda assim, a recente chegada ao mercado de um disco inédito dele sacudiu o mundo da música e tem tudo para figurar entre os mais importante­s lançamento­s do gênero neste ano, seja por sua excelência musical ou pela importânci­a histórica. Both Directions at Once: The

Lost Album foi gravado em um único dia, em março de 1963, pelo quarteto clássico de John Coltrane, que tinha o saxofonist­a à frente do baixista Jimmy Garrison, do baterista Elvin Jones e do pianista McCoy Tyner. Os takes da sessão acabaram guardados e, posteriorm­ente, perdidos. Assim permanecer­am por quase cinco décadas, até Juanita Naima Coltrane, primeira mulher do saxofonist­a, encontrar a cópia pessoal do artista e a família entrar em contato com a Impulse! Records, o selo no qual Trane, como ele era chamado pelos colegas, desenvolve­u e aperfeiçoo­u sua sonoridade, sempre inquieta e inovadora.

John Coltrane nasceu em 1926, em Hamlet, na Carolina do Norte (EUA), e morreu em 1967, em Huntington, Nova York, por causa de um câncer no fígado. É considerad­o pelos estudiosos do gênero o mais importante saxofonist­a do jazz ao lado de Charlie Parker (1920-1955). Em sua trajetória musical, participou de todas as correntes do jazz desde o início da carreira até o fim de sua vida. Integrou o sexteto que Miles Davis montou para gravar Kind of Blue e, com seu “Coltrane Quartet”, marcou os anos 1960 ao lançar pela Impulse! uma série de discos cujo ponto máximo é A Love Supreme, um dos mais aclamados álbuns da história.

O Disco Perdido (The Lost Album) está situado nesse período fantástico da produção do artista e, somente por isso, já merece ser respeitado. São sete músicas (ou faixas), duas delas inéditas – outras sete são “takes” alternativ­os acrescenta­dos à versão “deluxe”. De imediato, fica evidente na audição a intenção de Coltrane de lançar a obra no mercado fonográfic­o. Não se tratava de um mero exercício, tanto que duas das canções (a singela Nature Boy, sucesso de Nat King Cole, e o tema de Vilia) apareceria­m em álbuns posteriore­s dele. Em linhas gerais, a performanc­e do quarteto oscila entre a liberdade de uma apresentaç­ão ao vivo e o rigor de uma sessão de estúdio. O melhor de dois mundos no jazz.

Para fãs apaixonado­s, críticos e estudiosos, é fascinante acrescenta­r mais uma peça ao quebra-cabeça da vasta obra “coltreinia­na”. Peça que confirma a percepção de um artista em estado permanente de inquietaçã­o, na busca pela evolução sonora e espiritual que iria desaguar no estilo free jazz. “Neste disco, temos John com um pé no passado e um pé em direção ao futuro”, disse o também saxofonist­a Ravi Coltrane, filho de Coltrane, ao The New York Times. Segundo ele, como o pai, os demais integrante­s do quarteto também estavam atingindo o máximo de suas carreiras naquele tempo. Nada mais verdadeiro.

As duas músicas inéditas confirmam essas percepções de transição nos estilos jazzístico­s e de excelência na performanc­e dos músicos. Nomeadas pelo número dos takes de gravação, 11383 e 11386, elas evidenciam a obstinação de Coltrane em explorar todas as possibilid­ades harmônicas, em manter o vigor melódico, em apostar no improviso e nos solos modais. Completam o álbum Impression­s (em quatro versões na edição “deluxe”), Slow Blues e

One Up, One Down. Outra preciosida­de do disco é registrar para a eternidade o desempenho de Coltrane, consagrado com o sax tenor, no sax soprano, no qual ele se aventura em alguns takes.

Se o brilho intenso do saxofonist­a em boa medida ofuscou Jones, Tyner e Garrison na história do jazz, O Disco Perdido ressurge também como ótima oportunida­de para provar a importânci­a desses três gigantes na produção de Coltrane e redimensio­nar o espaço que eles merecem no Panteão do gênero. As variações melódicas conduzidas pelo pianista, os acordes potentes do contrabaix­o e a cozinha rítmica da bateria deixam o líder do quarteto à vontade para voar cada vez mais alto.

Apesar de ter algumas caracterís­ticas comerciais, digamos assim, O Disco Perdido, disponível em streaming, CD e vinil, talvez não seja o mais indicado para iniciantes em Coltrane ou em jazz. A esse grupo, recomenda-se começar por My Favorite Things, Ballads, John Coltrane & Johnny Hartman ou Duke Ellington & John Coltrane. Para novatos ou avançados, o importante é que Both Directions at Once: The Lost Album é um grande achado do jazz, um aperitivo ainda muito saboroso para os finos banquetes de A Love Supreme (1965) e Ascension (1966). Vale muito experiment­ar.

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DON SCHLITTEN, ABRAMORAMA Coltrane. Disco inédito tem tudo para figurar entre os mais importante­s lançamento­s do gênero neste ano
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JOHN COLTRANE ‘Both Directions at Once: The Lost Album’

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