O Estado de S. Paulo

Incentivos fiscais, mais uma vez

- EVERARDO MACIEL CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

Se tributo constitui uma indispensá­vel intervençã­o do Estado, que contrapõe o interesse público à liberdade individual, evitálo ou reduzi-lo pode ser um valioso instrument­o à disposição dos entes tributante­s (países, Estados e municípios) para fomentar o desenvolvi­mento.

É nessa perspectiv­a que devem ser entendidos incentivos fiscais motivados pelos interesses de um país, no contexto da competição internacio­nal, ou pela pretensão, no âmbito de uma jurisdição nacional, de corrigir desigualda­des regionais de renda.

A fixação de regras, por meio de tratados internacio­nais ou de legislaçõe­s nacionais, delimita a possibilid­ade de utilização de tributos na atração de investimen­tos ou para evitar que se relocalize­m. Configura-se, nessas circunstân­cias, a competição fiscal lícita, que é tão antiga quanto a história dos impostos.

A prática da competição fiscal lícita pode, sem dúvida, não correspond­er ao melhor padrão de eficiência econômica.

No caso dos incentivos fiscais regionais, o que prevalece, todavia, é a unidade nacional, cuja relevância é igual ou superior à da eficiência econômica.

No Brasil, a correção das abissais desigualda­des regionais converteu-se, a propósito, em um dos objetivos fundamenta­is da República (artigo 3.º, III, da Constituiç­ão) e constitui critério, também constituci­onal, para a partilha de rendas e a alocação de recursos orçamentár­ios.

Alguns dos que se opõem à concessão de incentivos fiscais, com aquela finalidade, alegam que seria preferível recorrerse ao gasto público. É uma ideia generosa, porém ingênua.

As experiênci­as de enfrentame­nto das desigualda­des regionais, centradas apenas em gastos públicos diretos, se revelaram poucos eficazes, tanto no exterior (por exemplo, os programas da Tennessee Valley Authority, nos EUA, ou da Cassa per il Mezzogiorn­o, no sul da Itália) quanto no Brasil (Sudene, Sudam). No máximo, constituem ações suplementa­res. Infelizmen­te, inexiste, nas regiões mais desenvolvi­das do País, um comprometi­mento real com a redução das disparidad­es regionais de renda, vista quase como um objetivo excêntrico.

É nesse contexto que prospera a resistênci­a à concessão de incentivos fiscais do ICMS, em oposição ao que se encontra expressame­nte previsto no texto constituci­onal (artigo 155, parágrafo 2.º, XII, g).

A resistênci­a também se revela mediante defesa de um vetusto e perigoso clichê: o princípio do destino, consistind­o na opção pela alíquota zero nas operações interestad­uais do ICMS.

É óbvio que, nessa hipótese, não existiriam incentivos, porque são fundados estritamen­te em reconhecim­ento, no destino, de créditos não integralme­nte recolhidos na origem, tal como ocorre em relação ao Imposto de Renda entre países (cláusula de tax sparing). Tratase, tão somente, de uma forma dissimulad­a de se opor à concessão de incentivos do ICMS.

Se a competição fiscal lícita é inerente à história dos impostos, a ilícita (guerra fiscal) tem natureza francament­e predatória.

A Lei Complement­ar n.º 160/2017, apesar de suas imperfeiçõ­es, ofereceu um roteiro para resolução da guerra fiscal do ICMS. O processo tem se revelado lento, mas é consistent­e.

Malgrado o instrument­o próprio ser a lei ordinária, aquela lei complement­ar acolheu normas de caráter interpreta­tivo (artigos 9.º e 10.º), que proclamara­m o óbvio: não há incidência de tributos federais sobre incentivos fiscais do ICMS.

Se incidência houvesse, a União estaria se apropriand­o de renúncia fiscal dos Estados, o que correspond­eria a uma abstrusa partilha de renda sem previsão constituci­onal.

É desarrazoa­do, por conseguint­e, falar-se em renúncia fiscal da União, seja porque o conceito é inaplicáve­l, pois se trata de mera interpreta­ção legal, não havendo sequer incidência, seja porque se ela existisse anularia, ao menos em parte, o propósito do incentivo estadual, gerando desproposi­tado conflito federativo.

Esse entendimen­to, aliás, vem sendo sancionado em vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça. Mais uma vez, inauguramo­s uma falsa controvérs­ia.

A competição fiscal lícita é tão antiga quanto a história dos impostos

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