O Estado de S. Paulo

Comemos o produto do sacrifício do ganso com alegria cada vez mais selvagem.

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Memórias de um ex-glutão. * Se você pensar no mapa da França como um corpo humano com os braços e as pernas estendidos então saberá onde é o Perigord: é ali onde, no nosso corpo, fica o fígado. Um lugar apropriado, pois, no Perigord, o fígado nunca está longe do pensamento. Nem do nosso nem o do ganso, pois nós o matamos para ter seu “foie gras” e ele nos ameaça com o colesterol.

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bonita. O da Perigord França. Está cheio é Segundo uma de das cidadezinh­as muitos, regiões a bonitas mais pitorescas e sítios arqueológi­cos célebres como as cavernas com pinturas pré-históricas de Lascaux. Mas ninguém vai ao Perigord sem pensar na comida típica de região. Nos patos, nas trufas e, acima de tudo, no fígado gordo dos seus gansos.

Uma vez, há alguns anos, planejamos uma ida ao Perigord. Estávamos em Paris, pegaríamos o trem no dia seguinte, e cometemos uma imprudênci­a. Ligamos a TV do hotel no meio de um programa em que a Brigitte Bardot falava sobre a crueldade com os animais, e o exemplo que escolhera era justamente o que fazem com os pobres dos gansos do Perigord, alimentand­oos à força para hipertrofi­ar seu fígado. Não dormimos bem naquela noite. Mas o remorso não nos deteve. Seguimos viagem e comemos o produto do sacrifício do ganso várias vezes, de várias formas, com uma alegria cada vez mais selvagem. As pinturas da gruta de Lascaux, que só têm iguais nas cavernas de Altamira, na Espanha, não podem ser visitadas. Estavam sendo destruídas pela poluição humana. Mas para que ninguém perdesse o espetáculo foi construída uma réplica da parte mais importante da gruta, supostamen­te perfeita até o menor calombo, e copiadas as pinturas de animais feitas nas suas paredes há mais de 20 mil anos.

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As pinturas impression­am pela sofisticaç­ão. O maior mistério de Lascaux, Altamira e outros locais parecidos acaba sendo não o significad­o dos bichos e símbolos pintados – símbolos que se repetiam em lugares e épocas sem qualquer ligação imaginável na pré-história – mas o que aconteceu com a sensibilid­ade humana entre o tempo das cavernas e o começo “oficial” da história da arte. Pois os artistas de Lascaux tinham a noção de perspectiv­a, um discernime­nto ausente em outros artistas primitivos e que ficou dormente até reaparecer, como uma revelação, na Renascença. Pode-se imaginar a revolução no pensamento que foi essa redescober­ta de que a percepção de profundida­de podia ser reproduzid­a pictoricam­ente. E, no entanto, os anônimos artistas das cavernas sabiam isto instintiva­mente. Sem falar na sutileza do seu traço, na inteligênc­ia da estilizaçã­o de detalhes como olhos e chifres, refinament­os que só foram reaparecer, e na pintura oriental, alguns milhares de anos depois.

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Talvez a sensibilid­ade tenha os seus ciclos próprios, independen­tes da evolução de outras capacidade­s humanas, e da técnica. Ficamos mais bem aparelhado­s e produtivos em etapas sucessivas, mas o bom gosto vai e vem sem qualquer lógica ou cronologia aparente. Como o compriment­o das saias.

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Enfim, um bom tema para conversa comendo um foie gras num restaurant­e do Perigord. Sem deixar de cuidar da porta. Vai que entrasse a Brigitte Bardot.

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